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A Lei dos Crimes Hediondos deve ser revogada?
SIM
Hedionda é a lei
MÁRCIO THOMAZ BASTOS
Sem dúvida a resposta para a pergunta é sim. Essa lei -ela, sim, hedionda, pela desorganização perversa
que trouxe ao sistema de direito penal
brasileiro- é fruto de um populismo
penal inaceitável e vem sendo ampliada ao influxo de ondas de pânico e demagogia vocalizadas pelos setoresmais atrasados e reacionários de nossa
sociedade.
Para realizar um debate sério acerca
de sua revogação é preciso utilizar como parâmetro o binômio custo/benefício, levando em conta, ainda, as três
finalidades da sanção penal, que são a
retributiva (consistente na imposição
de um castigo como contrapartida a
uma ação criminosa), a recuperadora
(que pressupõe medidas de ressocialização do preso, com o objetivo de evitar que ele venha a delinquir) e a intimidativa penal (a existência de leis penais duras impediria a ocorrência de
crimes graves).
Do ponto de vista do benefício que a
Lei dos Crimes Hediondos traria para
a sociedade brasileira, é evidente que
se coloca em um primeiro plano sua
capacidade de intimidação. Desse raciocínio surge a indagação óbvia: a criminalidade diminuiu depois que a lei
em questão entrou em vigor? Todos
sabemos que a resposta é não.
A recuperação dos presos, que também beneficiaria a sociedade (com a
diminuição da reincidência), por óbvio só seria alcançada com a implementação de uma política ressocializadora nos presídios, bem como com a
criação de um efetivo serviço de assistência e acompanhamento dos egressos do sistema carcerário. Não guarda,
portanto, nenhuma relação com a manutenção de leis penais mais rigorosas
(que atendem exclusivamente ao aspecto da pena como castigo).
Enfim, nitidamente ineficaz como
forma de enfrentar a escalada da violência, a Lei dos Crimes Hediondos
não trouxe nenhum benefício concreto à população brasileira.
Bem por isso, chega a ser angustiante
para os que atuam na área criminal a
forma passional com que alguns segmentos da sociedade vêm reagindo às
declarações do ministro da Justiça.
Talvez por desinformação, protesta-se
contra o fim da lei como se algo realmente benéfico estivesse sendo tirado
do povo!
Nessa linha de equívocos, atribuindo
aos dispositivos legais benefícios inexistentes, esquecem-se seus defensores de atentar para o custo social que a
manutenção da Lei dos Crimes Hediondos representa.
Com efeito, as garantias individuais,
que traduzem uma das principais conquistas da humanidade, foram seriamente afetadas por essa lei. A título de
exemplo, merecem destaque a proibição de liberdade provisória e a impossibilidade de progressão durante o
cumprimento da pena.
Ao impedir a liberdade provisória
(antes da formação da culpa), despreza-se o princípio da presunção de inocência, desvinculando-se a prisão sem
condenação da demonstração de sua
absoluta necessidade. Tais medidas
abrem uma porta ao arbítrio, aumentando consideravelmente o número de
prisões injustas. São frequentes os casos de meninos mantidos presos como
traficantes (depois de comprarem maconha para si e para a namorada, por
exemplo) que, quando saem da cadeia
por absolvição ou desclassificação, já
sofreram de forma irremediável os terríveis efeitos do convívio carcerário,
que corrompe, degrada e encaminha
para o crime.
O dispositivo que veda a progressão
a regimes prisionais mais brandos, por
seu turno, impede o processo de recuperação dos presos. Ao contrário, acaba por criar verdadeiras feras humanas, sempre dispostas à rebelião e à fuga, aumentando, ao invés de diminuir,
a reincidência criminosa.
Trata-se, portanto, de uma lei que de
um lado ilude a população, causando-lhe a falsa impressão de que contribui
para minimizar os problemas que a
afligem, e de outro acaba por constituir mais um fator de insegurança, na
medida em que sacrifica as garantias
individuais.
Claro que só revogá-la não nos levará
ao paraíso. É preciso insistir sempre
em que mudar a lei não muda muito a
realidade. A grande tarefa do governo
e dos que lidam com o direito penal é
desmontar a linha de produção de criminalidade que acabou por se estabelecer no Brasil (Febem, polícia, Justiça,
cadeia), reconstruindo cada uma dessas instituições.
Márcio Thomaz Bastos, 64, é advogado criminal. Foi
presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (1987-89) e da OAB-SP (1983-85).
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