São Paulo, Sábado, 02 de Outubro de 1999
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A Lei dos Crimes Hediondos deve ser revogada?

SIM
Hedionda é a lei

MÁRCIO THOMAZ BASTOS

Sem dúvida a resposta para a pergunta é sim. Essa lei -ela, sim, hedionda, pela desorganização perversa que trouxe ao sistema de direito penal brasileiro- é fruto de um populismo penal inaceitável e vem sendo ampliada ao influxo de ondas de pânico e demagogia vocalizadas pelos setoresmais atrasados e reacionários de nossa sociedade.
Para realizar um debate sério acerca de sua revogação é preciso utilizar como parâmetro o binômio custo/benefício, levando em conta, ainda, as três finalidades da sanção penal, que são a retributiva (consistente na imposição de um castigo como contrapartida a uma ação criminosa), a recuperadora (que pressupõe medidas de ressocialização do preso, com o objetivo de evitar que ele venha a delinquir) e a intimidativa penal (a existência de leis penais duras impediria a ocorrência de crimes graves).
Do ponto de vista do benefício que a Lei dos Crimes Hediondos traria para a sociedade brasileira, é evidente que se coloca em um primeiro plano sua capacidade de intimidação. Desse raciocínio surge a indagação óbvia: a criminalidade diminuiu depois que a lei em questão entrou em vigor? Todos sabemos que a resposta é não.
A recuperação dos presos, que também beneficiaria a sociedade (com a diminuição da reincidência), por óbvio só seria alcançada com a implementação de uma política ressocializadora nos presídios, bem como com a criação de um efetivo serviço de assistência e acompanhamento dos egressos do sistema carcerário. Não guarda, portanto, nenhuma relação com a manutenção de leis penais mais rigorosas (que atendem exclusivamente ao aspecto da pena como castigo).
Enfim, nitidamente ineficaz como forma de enfrentar a escalada da violência, a Lei dos Crimes Hediondos não trouxe nenhum benefício concreto à população brasileira.
Bem por isso, chega a ser angustiante para os que atuam na área criminal a forma passional com que alguns segmentos da sociedade vêm reagindo às declarações do ministro da Justiça. Talvez por desinformação, protesta-se contra o fim da lei como se algo realmente benéfico estivesse sendo tirado do povo!
Nessa linha de equívocos, atribuindo aos dispositivos legais benefícios inexistentes, esquecem-se seus defensores de atentar para o custo social que a manutenção da Lei dos Crimes Hediondos representa.
Com efeito, as garantias individuais, que traduzem uma das principais conquistas da humanidade, foram seriamente afetadas por essa lei. A título de exemplo, merecem destaque a proibição de liberdade provisória e a impossibilidade de progressão durante o cumprimento da pena.
Ao impedir a liberdade provisória (antes da formação da culpa), despreza-se o princípio da presunção de inocência, desvinculando-se a prisão sem condenação da demonstração de sua absoluta necessidade. Tais medidas abrem uma porta ao arbítrio, aumentando consideravelmente o número de prisões injustas. São frequentes os casos de meninos mantidos presos como traficantes (depois de comprarem maconha para si e para a namorada, por exemplo) que, quando saem da cadeia por absolvição ou desclassificação, já sofreram de forma irremediável os terríveis efeitos do convívio carcerário, que corrompe, degrada e encaminha para o crime.
O dispositivo que veda a progressão a regimes prisionais mais brandos, por seu turno, impede o processo de recuperação dos presos. Ao contrário, acaba por criar verdadeiras feras humanas, sempre dispostas à rebelião e à fuga, aumentando, ao invés de diminuir, a reincidência criminosa.
Trata-se, portanto, de uma lei que de um lado ilude a população, causando-lhe a falsa impressão de que contribui para minimizar os problemas que a afligem, e de outro acaba por constituir mais um fator de insegurança, na medida em que sacrifica as garantias individuais.
Claro que só revogá-la não nos levará ao paraíso. É preciso insistir sempre em que mudar a lei não muda muito a realidade. A grande tarefa do governo e dos que lidam com o direito penal é desmontar a linha de produção de criminalidade que acabou por se estabelecer no Brasil (Febem, polícia, Justiça, cadeia), reconstruindo cada uma dessas instituições.


Márcio Thomaz Bastos, 64, é advogado criminal. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (1987-89) e da OAB-SP (1983-85).



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