São Paulo, segunda-feira, 02 de novembro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A doença do financiamento da saúde

PAULO CAPEL NARVAI


É hora de pôr um ponto final na longa e chata novela do financiamento da saúde, que passa por doença grave e tem diagnóstico claro


A INCÚRIA com que os poderes públicos vêm lidando com o problema do financiamento da saúde no Brasil tem graves consequências: mata diariamente milhares de brasileiros, sobretudo os pobres.
O SUS, única possibilidade assistencial para mais de 75% da população, conta com um esquema de financiamento frágil e que não se ampara em lei. Algumas fontes, mesmo regulares, podem ter alíquotas diminuídas e, no limite, suprimidas.
Governantes, de todas as esferas, fazem o que querem com os recursos do setor. Dinheiro que deveria cobrir gastos com partos é empregado até para vacinar gado.
Os conselhos de saúde, criados pela lei 8.142/90 para cumprir a determinação constitucional de assegurar a participação da comunidade na gestão da coisa pública, controlando-a, são frequentemente desrespeitados, como acontece atualmente na cidade de São Paulo.
Ao tomar posse, o ministro José Gomes Temporão ouviu de Lula que estava assumindo o "pepino da Saúde". Recebeu também o "abacaxi" do financiamento.
Antes da criação do SUS, cerca de um terço do orçamento da Previdência Social era destinado ao financiamento de ações de saúde para segurados e dependentes. Esses recursos eram aplicados em ações ambulatoriais, laboratoriais e hospitalares.
O Ministério da Saúde, por seu lado, bancava as ações de controle de epidemias, vacinação, educação em saúde e assistência dos não segurados da Previdência.
O sistema, dual, era muito criticado, por inviabilizar ações integrais. Aqui mesmo, na Folha, ganhou notoriedade Carlos Gentile de Mello, um dos mais duros críticos. Não sem razão, os constituintes de 1988 criaram não apenas um sistema público de saúde, mas um sistema único.
Contudo, desde a criação do SUS, os recursos previdenciários vêm sendo progressivamente retirados do financiamento do sistema. A ideia de estruturar no Brasil uma seguridade social forte, capaz de fazer frente aos enormes desafios de um país com tantas e profundas desigualdades, é praticamente letra morta na nossa Carta Magna.
São imensos os problemas com que se deparam, diariamente, os gestores do SUS, seja em decorrência das péssimas condições de vida da maioria da população brasileira, que produzem enfermidades e mortes aos milhões, seja em consequência das dificuldades gerenciais que marcam a administração pública.
Acresce-se a essas dificuldades a crônica falta de recursos financeiros, decorrente de esquemas amadores e precários de orçamentação, alocação e gestão.
Porém, mesmo com essa enfermidade do financiamento e os problemas de gestão, o desempenho atual do SUS ostenta feitos nem sempre do conhecimento público, como o controle da última epidemia de cólera, a eliminação da poliomielite e o controle do sarampo.
Chegou-se a prever centenas de milhares de mortes por cólera, talvez milhões. O trabalho do SUS controlou a epidemia. Mas, como isso é um não fato em termos jornalísticos, poucos sabem. Ademais, são bem conhecidos fatos como a realização de mais de 2 milhões de partos e 12 mil transplantes por ano, entre outras realizações assistenciais.
É hora, contudo, de pôr um ponto final na longa e chata novela do financiamento da saúde. Amadorismo não combina com vacinação em massa, ambulatórios, cirurgias, transplantes, ações de vigilância sanitária. Sanitaristas vêm alertando sobre o forte subfinanciamento do SUS, implicando baixos salários e precariedade nas relações e condições de trabalho.
A doença do financiamento da saúde é grave. O diagnóstico é claro. Sabe-se das dificuldades relacionadas ao tratamento e não se pode perder tempo. Deve-se agir rapidamente e colocar no passado, definitivamente, a cena lamentável de, todos os anos, ministros e secretários da Saúde participarem de acordos políticos e conchavos no Congresso Nacional, em Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores para aprovar verbas para a saúde nos seus orçamentos.
É preciso regulamentar a emenda constitucional 29, que tramita no Congresso e trata do financiamento da saúde nas três esferas de governo, fixa regras para a alocação de recursos para o setor e define o que são gastos em saúde.
É urgente que o Congresso supere a paralisia que o tem levado a postergar a regulamentação da emenda, como se estivesse a esperar Godot. Não há o que esperar. É preciso agir e fazer com que essa letargia parlamentar pare de matar brasileiros.

PAULO CAPEL NARVAI, 55, doutor em saúde pública, é professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP. Coordena o programa de pós-graduação em saúde pública da USP e representa a universidade pública no Conselho Municipal de Saúde de São Paulo.


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