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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Lei de Anistia deve ser revista?
NÃO
Revisão para tudo ficar como está?
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
A ANISTIA, o milenar instituto
político de clemência, esquecimento e concórdia, está no
centro de uma disputa jurídica e moral. O tema veio a público por causa de
uma ação civil em que ex-presos políticos no regime militar de 1964 pleiteiam a declaração de que foram torturados, abrindo-se a possibilidade da
revisão da Lei de Anistia (1979) para
permitir a punição de torturadores.
A lei concedeu anistia a todos que,
entre 2/9/1961 e 15/8/1979, cometeram crimes políticos ou com eles conexos (art. 1º), sendo considerados
conexos os de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou
praticados por motivação política
(parágrafo 1º), excluídos os condenados pela prática de crime de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal (parágrafo 2º).
No parágrafo 1º, estavam os que,
mesmo pela prática de tortura, teriam agido no cumprimento de uma
ordem funcional. No parágrafo 2º, excluídos da anistia, os que teriam praticado atos contra-revolucionários
considerados crimes.
Essa exclusão violava um princípio
de justiça: anistiava os torturadores,
mas não os terroristas. Diante desse
flagrante tratamento desproporcional, a jurisprudência do STM (Superior Tribunal Militar) estendeu o benefício aos terroristas: a anistia tornou-se geral e irrestrita.
O fato de a anistia ter-se tornado irrestritamente geral, mediante uma
jurisprudência com base num argumento de justiça, a desvinculou de
uma relação meio/fim -portanto, de
um cálculo de avaliação da gravidade
de atos e correspondentes punições.
Isso a aproximou de suas origens
mais remotas, quando era concedida
em alusão a eventos que não guardavam nenhuma relação com os efeitos
do ato soberano, vista, então, no direito moderno, basicamente, não como
um eticamente justificado favorecimento individual, já que seus destinatários imediatos são a pessoa humana
e a sociedade. Por isso, não é ato de
ponderação calculadora, de sopesamento de valores e atos.
Nesse sentido, não pede nenhuma
justificação condicional ao ato da autoridade que a concede, ainda que, secundariamente, possa atingir certas
finalidades (por exemplo, a paz social
ou um benefício econômico). Ou seja,
ela não é concedida porque um conjunto de pessoas se beneficia nem para que se beneficie, mas no interesse
soberano da própria sociedade.
Ora, uma revisão da lei, sobretudo
com o fito de punir militares por atos
de tortura, reverterá o argumento jurisprudencial, pois solapa a extensão
da anistia aos terroristas, fazendo
com que todo o universo de avaliações mutuamente negativas (exclusão/inclusão de terrorismo/tortura)
volte a ser discutido. Ou seja, voltaria
a necessidade de avaliações de atos e
de suas conseqüências, vinculando
sua discussão a um cálculo de relações meio/fim, com distinções de natureza ética e jurídica.
Afinal, sendo oblívio, esquecimento, juridicamente a anistia provoca a
criação de uma ficção legal: não apaga
propriamente a infração, mas o direito de punir, razão pela qual aparece
depois de ter surgido o fato criminoso, não se confundindo com uma novação legislativa, isto é, não transforma o crime em ato lícito. Ou seja, de
parte a parte, numa revisão, o caráter
criminoso dos respectivos atos estará
sendo reafirmado, pois com base neles é que o direito de punir (anistia)
será ou não afastado.
Ademais, com uma limitação constitucional. Como o artigo 8º das Disposições Constitucionais Transitórias (Constituição de 1988) concede
anistia aos atingidos, em decorrência
de motivação exclusivamente política, por atos de exceção institucionais,
a revisão teria de partir desse fato. Isto é, a revisão da lei jamais poderia
deixar de anistiar os contra-revolucionários de 64.
Com isso, dado o objetivo inevitável
de uma anistia irrestritamente geral,
o argumento de justiça invocado pelo
STM em favor dos que, movidos por
razões políticas, tenham praticado
atos de terror, seqüestro, assalto ou
atentados pessoais, acabaria por ser,
inevitavelmente, utilizado em favor
dos torturadores, o que faria da revisão um esforço inútil: mudar para que
tudo fique como está.
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, 65, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral
do Direito da Faculdade de Direito da USP.
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