São Paulo, sábado, 02 de dezembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei de Anistia deve ser revista?

NÃO

Revisão para tudo ficar como está?

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

A ANISTIA, o milenar instituto político de clemência, esquecimento e concórdia, está no centro de uma disputa jurídica e moral. O tema veio a público por causa de uma ação civil em que ex-presos políticos no regime militar de 1964 pleiteiam a declaração de que foram torturados, abrindo-se a possibilidade da revisão da Lei de Anistia (1979) para permitir a punição de torturadores.
A lei concedeu anistia a todos que, entre 2/9/1961 e 15/8/1979, cometeram crimes políticos ou com eles conexos (art. 1º), sendo considerados conexos os de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política (parágrafo 1º), excluídos os condenados pela prática de crime de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal (parágrafo 2º).
No parágrafo 1º, estavam os que, mesmo pela prática de tortura, teriam agido no cumprimento de uma ordem funcional. No parágrafo 2º, excluídos da anistia, os que teriam praticado atos contra-revolucionários considerados crimes.
Essa exclusão violava um princípio de justiça: anistiava os torturadores, mas não os terroristas. Diante desse flagrante tratamento desproporcional, a jurisprudência do STM (Superior Tribunal Militar) estendeu o benefício aos terroristas: a anistia tornou-se geral e irrestrita.
O fato de a anistia ter-se tornado irrestritamente geral, mediante uma jurisprudência com base num argumento de justiça, a desvinculou de uma relação meio/fim -portanto, de um cálculo de avaliação da gravidade de atos e correspondentes punições.
Isso a aproximou de suas origens mais remotas, quando era concedida em alusão a eventos que não guardavam nenhuma relação com os efeitos do ato soberano, vista, então, no direito moderno, basicamente, não como um eticamente justificado favorecimento individual, já que seus destinatários imediatos são a pessoa humana e a sociedade. Por isso, não é ato de ponderação calculadora, de sopesamento de valores e atos.
Nesse sentido, não pede nenhuma justificação condicional ao ato da autoridade que a concede, ainda que, secundariamente, possa atingir certas finalidades (por exemplo, a paz social ou um benefício econômico). Ou seja, ela não é concedida porque um conjunto de pessoas se beneficia nem para que se beneficie, mas no interesse soberano da própria sociedade.
Ora, uma revisão da lei, sobretudo com o fito de punir militares por atos de tortura, reverterá o argumento jurisprudencial, pois solapa a extensão da anistia aos terroristas, fazendo com que todo o universo de avaliações mutuamente negativas (exclusão/inclusão de terrorismo/tortura) volte a ser discutido. Ou seja, voltaria a necessidade de avaliações de atos e de suas conseqüências, vinculando sua discussão a um cálculo de relações meio/fim, com distinções de natureza ética e jurídica.
Afinal, sendo oblívio, esquecimento, juridicamente a anistia provoca a criação de uma ficção legal: não apaga propriamente a infração, mas o direito de punir, razão pela qual aparece depois de ter surgido o fato criminoso, não se confundindo com uma novação legislativa, isto é, não transforma o crime em ato lícito. Ou seja, de parte a parte, numa revisão, o caráter criminoso dos respectivos atos estará sendo reafirmado, pois com base neles é que o direito de punir (anistia) será ou não afastado.
Ademais, com uma limitação constitucional. Como o artigo 8º das Disposições Constitucionais Transitórias (Constituição de 1988) concede anistia aos atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção institucionais, a revisão teria de partir desse fato. Isto é, a revisão da lei jamais poderia deixar de anistiar os contra-revolucionários de 64.
Com isso, dado o objetivo inevitável de uma anistia irrestritamente geral, o argumento de justiça invocado pelo STM em favor dos que, movidos por razões políticas, tenham praticado atos de terror, seqüestro, assalto ou atentados pessoais, acabaria por ser, inevitavelmente, utilizado em favor dos torturadores, o que faria da revisão um esforço inútil: mudar para que tudo fique como está.


TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, 65, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP.


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