São Paulo, terça-feira, 02 de dezembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fusão nuclear: resposta de um nucleopata

ODAIR DIAS GONÇALVES


Artigos recentes disseram que o Brasil iria participar do Iter como cotista, pagando US$ 1 bilhão. Queremos esclarecer alguns pontos

RECENTEMENTE , o professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite publicou nesta página mais um de seus veementes artigos discorrendo sobre o absurdo de um suposto pagamento de US$ 1 bilhão que o Brasil estaria fazendo ao Iter para se tornar associado, quando poderia pagar apenas US$ 1 milhão ("A apoteose do besteirol energético", "Tendências/Debates", 18/11). Como o artigo teve repercussão e foi baseado em fontes mal informadas (ou fruto de algum mal-entendido), resolvemos esclarecer alguns pontos.
A sigla Iter (International Thermonuclear Experimental Reactor) corresponde ao projeto de desenvolvimento e construção de um reator que gerará energia elétrica a partir da fusão nuclear, um processo no qual a junção de dois núcleos leves, deutério e trítio, forma um núcleo mais pesado, o hélio, gerando, nesse processo, enorme quantidade de energia. O projeto está avançado e espera-se que reatores comerciais desse tipo estejam disponíveis daqui 30 ou 50 anos.
O projeto funciona em consórcio, e cada país deve pagar uma fração do custo estimado - 10 bilhões para os próximos 20 anos (ver www.iter.org). Ao pagar tal cota, o país passa a ser "sócio" do projeto e detentor de uma fração das patentes geradas. Os sócios atuais são: União Européia, EUA, Rússia, Japão, Índia, China e Coréia. O valor da cota é de 50% para a União Européia e 50% divididos entre os demais participantes, perfazendo cerca de US$ 1 bilhão por país.
Ao assumirmos a Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear) em 2003, os cientistas brasileiros que trabalham em fusão encontravam-se dispersos em diversas instituições e participavam esporadicamente de projetos relacionados ao Iter por meio de cooperação com laboratórios dos países sócios, entre eles Portugal e Inglaterra.
O então ministro Roberto Amaral (Ciência e Tecnologia) sugeriu que estudássemos a possibilidade de a Cnen absorver o Grupo de Fusão do Inpe e que, ao mesmo tempo, pensássemos em participar oficialmente do Iter. Na ocasião, a Cnen estava envolvida com a reestruturação do programa nuclear, e concluímos que não seria conveniente o país participar do Iter como sócio, principalmente devido ao montante necessário, mas também por termos certo acesso ao conhecimento em desenvolvimento por meio das colaborações.
Já naquela época, cogitava-se que o país poderia contribuir não com dinheiro, mas com nióbio, metal que temos em abundância e que é necessário ao reator. Nosso parecer foi contrário, pois o nióbio brasileiro é explorado por empresa privada -teríamos que pagar de qualquer forma a quantia em dinheiro.
Em 2006, o ministro Sergio Rezende (Ciência e Tecnologia) decidiu que deveríamos esclarecer a situação e que, participando ou não do Iter, deveríamos coordenar os esforços brasileiros na área de fusão. Foi criada então a Rede Nacional de Fusão, sob coordenação da Cnen e tendo o professor Ricardo Galvão, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, como coordenador técnico.
Foi alocada uma verba para pesquisas na área e iniciamos estudos para a constituição de um laboratório nacional de fusão, ligado à Cnen, a ser construído provavelmente em Cachoeira Paulista e para onde será transferida a maioria dos pesquisadores e equipamentos do país.
Uma das primeiras tarefas recebidas do ministro foi conversar com autoridades do Iter e da Euratom (órgão da União Européia que administra sua participação no Iter) para verificar quais as possibilidades de participação do Brasil no projeto, tendo como premissa que o pagamento da cota não estava em consideração.
Tivemos a satisfação de saber que a UE e o Iter tinham muito interesse em nossa participação, devido à qualidade de nossos cientistas, e que iriam estudar mecanismos que permitissem ao Brasil participar como colaborador, e não como cotista.
O acordo está avançado e deve ser assinado em breve, sem compromisso de pagamento de cota ou taxas. Artigos recentes disseram que o Brasil iria participar do Iter como cotista e que, para isso, pagaria US$ 1 bilhão. Não sabemos qual foi a fonte, mas sabemos que ninguém com acesso às negociações faria tal afirmação.
Em recente almoço, a convite da Folha e com a presença do professor Cerqueira Leite, o assunto foi tocado e reafirmamos os esclarecimentos acima. Provavelmente não fomos claros o suficiente ou então um ataque de "nucleopatia" nos tenha feito afirmar exatamente o contrário daquilo que são fatos facilmente verificáveis.


ODAIR DIAS GONÇALVES , 56, mestre e doutor em física pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é presidente da Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear).

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