São Paulo, quarta, 2 de dezembro de 1998

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A luta dos intelectuais russos


Vejo na luta heróica de Starovóitova a expressão mais plena do combate que a "intelligentsia" russa continua travando


BORIS SCHNAIDERMAN

Os nossos jornais noticiaram amplamente o assassínio, em Petersburgo, da "deputada liberal russa Galina Starovóitova"; trataram dela como "uma das maiores ativistas pró-democracia do país" e possível candidata à Presidência no ano 2000. Mas faltou dizer que ela era um dos nomes mais em evidência entre os etnólogos russos contemporâneos. Sua própria atividade política tinha muito a ver com as idéias de seus trabalhos científicos, caracterizados geralmente por um tom franco e direto, sem maiores complicações terminológicas, fato bastante comum nos ensaios russos de ciências humanas.
Segundo artigo de Luis Matías López em "El País" (traduzido pela Folha de 24/11, pág. 1-18), "o último ataque da deputada versou sobre declarações anti-semitas do deputado neocomunista Albert Makachov". Ora, isso nos remete diretamente a certas formulações de Starovóitova em seu artigo "Paradoxo étnico e estereótipo do pensamento", publicado, na tradução brasileira de Éssio Simonetti, no livro "Perestroika, Desafios da Transformação Social na URSS", organizado por Lenina Pomeranz (Edusp, 1990).
Nesse trabalho, ela faz uma crítica vigorosa da concepção sobre esses temas vigente na Rússia até meados da década de 80, quando se exaltava a "harmonia interétnica ignorando a agudez (profundidade?) e a tensão das colisões reais", e analisa essas colisões como uma das características de nossa época. "O despertar da consciência étnica dos povos que vivem na "sociedade pós-industrial'", escreve ela, "deve-se provavelmente à resistência inconsciente à influência niveladora das tecnologias contemporâneas e a modelos de modo de vida que ameaçam a tradição cultural e a identidade nacional".
Mas, procurando encarar e analisar com naturalidade esses fatos, ela adverte para o perigo da intolerância, da exaltação de um grupo em detrimento de outros, e se volta contra o "estereótipo habitual de raciocínio que vê em tudo um "esquema de conspiração' de "um punhado de extremistas internos' (provocadores, instigadores externos, por exemplo, agentes da burguesia mundial, quaisquer malfeitores, inclusive "maçons-judeus')". Depois, dando nome aos bois, avalia as atividades da associação Pámiat ("memória"), que V. Tohepaitis cita como "atrasada resistência à perda dos traços nacionais". Starovóitova diz: "Resistência (...) que tenta empregar meios inadequados e conclama ao caminho sem perspectivas do isolamento nacional, da conservação de uma ilusória "pureza do sangue' e assim por diante".
Desse modo, ela põe o dedo na ferida; recusa simplesmente "compreender" as motivações psicológicas dos grupos de direita, entre os quais a Pámiat tem uma triste notoriedade, pois já provocou violências físicas contra judeus, tártaros e caucasianos. Como calar-se diante da atuação de um grupo que prega a superioridade dos "autenticamente russos" e pede o isolamento dos demais, a sua eliminação da vida pública? Starovóitova não se calou.
Há pouco, houve vasta discussão na Rússia e em países ocidentais sobre o fim da "intelligentsia" russa, termo compreendido não apenas como camada social dos que exercem atividades intelectuais, mas abrangendo uma constatação ética e de preocupação com o humano. Porém, em meio a dificuldades tremendas, os russos continuam afirmando a vitalidade de sua cultura. Certamente a atuação de Starovóitova, morta aos 52 anos, evidenciou o desassombro com que certos representantes dessa "intelligentsia" assumem seu papel. O crime deixou o mundo mais pobre, menos digno.
No mesmo texto da deputada, aparece uma nota desalentada. "O genocídio das repressões stalinistas abateu o povo russo do mesmo modo que outros; entre muitos povos encontram-se pessoas dispostas a assumir o papel de carrascos de seus compatriotas. Nesse sentido, todos eram iguais. Mas me parece que há uma consequência a mais dos duros anos de nossa história: foram eliminados não todos, sem distinção, mas os melhores, os mais audazes, independentes, responsáveis e com espírito de iniciativa -em suma, os que sobressaíram à grama aparada, os que puderam erguer os braços não "a favor', como todos, mas "contra', os que tiveram voz, os que primeiro saíram da trincheira conduzindo os outros ao ataque... De modo que a guerra, como o stalinismo, liquidou certamente os melhores. Pode-se compreender o escritor V. Astáfiev quando pergunta, alarmado, se não terá mudado o próprio fundo genético do povo russo em consequência dessas perdas".
Se acompanhássemos o espírito dessa nota, teríamos de concluir que a própria morte de quem a escreveu constitui prova de sua validade. No entanto, devemos recusar essa conclusão pessimista. Vejo na luta heróica de Starovóitova a expressão mais plena de um combate que a "intelligentsia" russa continua travando, cujos ecos têm chegado até nós com muita dificuldade.


Boris Schnaiderman, 81, é professor livre-docente aposentado de língua e literatura russa da USP, ensaísta e tradutor. É autor de "Os Escombros e o Mito" (Companhia das Letras, 1997), entre outras obras.




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