São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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Os desafios do governo



O Brasil precisa de um federalismo real. Iniciativas e decisões locais são necessárias e preferíveis às nacionais
ALBERT FISHLOW

Fernando Henrique Cardoso tornou-se anteontem o primeiro presidente na história do Brasil a iniciar constitucionalmente um segundo mandato. Essa não é nem de longe a única coisa que tem a seu crédito. Nos últimos quatro anos, houve avanços históricos -econômicos, sociais e políticos. E isso foi conquistado com plena participação do Congresso. Às vezes, em meio a problemas e dificuldades continuados, essa realização impressionante deixa de ser lembrada.
Mas agora o governo enfrenta, talvez, seu maior desafio: resolver de uma vez por todas as dúvidas dos mercados financeiros internacionais quanto à solidez do Brasil no que tange à política fiscal. Em 1998, vimos um círculo vicioso. Os juros são altos, para desencorajar a fuga de capitais e sustentar a confiança no real. Isso leva a um aumento excessivo dos custos financeiros para o governo e a déficits fiscais ainda maiores. A produção sofre, o investimento real perde ímpeto e a receita do governo cai, o que exige a adoção de políticas monetárias ainda mais severas.
Isso pode funcionar por um período curto, mas não indefinidamente. É hora de caminhar para um círculo virtuoso. O que o Brasil definitivamente requer em 1999 (e no futuro) é um superávit fiscal. E é preciso obtê-lo pela redução de gastos governamentais perdulários e excessivos, bem como pelo aumento das receitas do governo.
Assim, os juros, extraordinariamente altos para os padrões internacionais, podem cair para níveis bem mais razoáveis, reduzindo seu ônus em relação a uma dívida nacional estabilizada. A âncora de credibilidade do sistema poderá, com isso, transferir-se do real para a política fiscal. Preços estáveis se tornarão produto da confiabilidade fiscal, não da política monetária rígida. Haverá maior flexibilidade de escolha quanto à política cambial, já que seu papel deixará de ser tão decisivo.
Superávit fiscal é importante não só para satisfazer os mercados internacionais e o FMI, mas por outra razão, às vezes obscurecida pelo atual foco de emergência. Uma necessidade fundamental para o crescimento de longo prazo é ampliar a poupança nacional. Para crescer a um ritmo anual de 6%, o Brasil requer uma taxa de investimento de cerca de 25% de seu PIB (Produto Interno Bruto). A poupança externa pode fornecer, talvez, de 2% a 3% desse total; o restante precisa ser gerado domesticamente. O modelo histórico de crescimento rápido do Brasil, no passado recente, baseava-se em poupança privada e investimento do governo. Os papéis têm de ser invertidos.
O investimento privado, no futuro, pode ser parcialmente financiado com poupança governamental. A privatização, agora bem adiantada, começou o processo. Mas sua continuação satisfatória depende de superávits governamentais disponíveis para futuro investimento, além dos recursos públicos necessários para educação, saúde, habitação e outros investimentos sociais.
Temos outra necessidade de longo prazo, ligada a essa: o Brasil precisa de um federalismo real. Tanto no nível da receita quanto no dos gastos, iniciativas e decisões locais são necessárias e preferíveis às nacionais. Estados e municípios não podem ficar isentos da nova disciplina fiscal. O Brasil já progrediu rumo a uma emenda constitucional que limita os gastos com salários a 60% das receitas totais da unidade envolvida. Mas ganhos maiores são tanto possíveis quanto necessários.
Por fim, mas não menos importante, vem uma distribuição mais justa de renda e oportunidades. O Brasil vem tendo, ao longo do tempo, uma das mais desiguais distribuições de renda do mundo. Ela não desaparecerá em um passe de mágica dentro de alguns anos. Lidar com o problema requer compromisso continuado.
Um primeiro (mas muito importante) passo já foi dado, com o fim da inflação. O efeito de distorção da inflação se concentrava sobre as classes mais baixas. Agora, elas não pagam mais o imposto inflacionário, que reduzia sua renda. Mas o próximo requisito, que deve ser mantido ao longo da próxima década sem interrupção, é criar um sistema eficiente de educação, que seja acessível a todos e não resulte em alta repetência nas séries iniciais e em subsídios estatais imensos no nível universitário. Só assim o Brasil poderá dar chances verdadeiras de avanço social e de renda. Além do mais, não há contradição entre desenvolvimento acelerado e redução da desigualdade; ambos podem ser realizados simultaneamente.
O progresso firme quanto ao superávit fiscal a curto prazo é necessário para o avanço sustentado nessas três áreas no futuro (e consistente com ele). Muito já foi feito. Alguns de nós acreditam que os próximos quatro anos verão ganhos ainda maiores, que estabelecerão a base para que o Brasil se torne um verdadeiro líder no século 21.


Albert Fishlow, 62, é consultor sênior de economia internacional do Council on Foreign Relations, em Nova York (EUA). Foi professor das universidades da Califórnia em Berkeley (1983-94) e de Yale (1978-83).
Tradução de Paulo Migliacci





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