São Paulo, quinta-feira, 03 de fevereiro de 2005

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O conflito de Angra 3 não serve a ninguém

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

O conflito entre o Ministério de Energia e o da Ciência e Tecnologia (Folha, 23/01) sobre o término da construção de Angra 3 é compreensível -melhor ainda, é previsível. Pela sua própria natureza, o primeiro vê a questão de um ponto de vista fundamentalmente econômico, enquanto o segundo a considera sob uma perspectiva que inclui aspectos geopolíticos e tecnológicos importantes. Pois bem, ignorar esta última condição seria lastimável. E, por outro lado, seria também irresponsável insistir em uma opção de alto risco financeiro. Todavia, há uma solução que reconcilia, e até mesmo aperfeiçoa, as duas propostas. Mas antes vamos rapidamente descrever o estado da arte da energia nuclear no mundo.
Há dois fenômenos nucleares que podem fornecer energia. Um átomo pesado pode fissionar (fissão), ou seja, dividir-se em dois ou mais átomos menores, liberando energia. Também é possível que dois ou mais átomos menores se fusionem (fusão) em um átomo maior, gerando energia igualmente.
A fusão é a grande esperança da humanidade há pelo menos 50 anos, quando foram detonadas as primeiras bombas de hidrogênio, pois o fenômeno é o mesmo. Além do mais, por analogia com a fusão que pode ser controlada de imediato, resultando nos reatores correntes, esperava-se que o mesmo ocorreria com a fusão.
Àquela época, década de 70, contrariando muitos otimistas, afirmei que antes de 50 anos não haveria reator a fusão nuclear comercial. Pois bem, os imensos esforços em pesquisas no campo (só no Japão existem três configurações e esquemas intensamente estudados) serviram principalmente para demonstrar a imensa dificuldade para resolver os problemas básicos da fusão controlada. E, certamente, nenhum especialista confiaria em uma previsão comercial para menos de 50 anos. Os mais sensatos aceitariam prognósticos para 100 anos como mais prováveis.
Então, por que tanto empenho, tanta pesquisa, tanto investimento em fusão nuclear? A resposta é simples. Os benefícios seriam tão magnificentes, embora distantes, que compensariam qualquer risco e qualquer investimento. De fato, há uma reserva praticamente inesgotável dos elementos que viriam a constituir a matéria prima para eventuais combustíveis. Além do mais, não haveria resíduos agressivos, como é o caso da fissão. E, às vezes, um sonho tem um valor econômico palpável, concreto.


É óbvia a importância de pequenos reatores em uma rede de distribuição extensa como a nossa

Na contramão, a fusão nuclear se viabilizou prematuramente, mas empacou muito cedo. E.U.A., Alemanha e, em certa medida, Inglaterra e alguns países da Escandinávia, interromperam seus programas nucleares. Não obstante, nesses mesmos países e em outros os investimentos em pesquisas continuaram a fluir. Vejamos por que essa aparente ambivalência veio a ocorrer.
Técnicos e cientistas reconhecem que o conjunto de diferentes arquiteturas que atualmente dominam a produção de reatores nucleares e são englobadas em uma única classe tecnológica denominada "reatores de água leve" (LWR) é inerentemente inseguro. Que o leitor não se amedronte: vamos explicar essa qualificação por uma analogia com o pára-quedismo.
No começo da Primeira Guerra Mundial dizia-se que em um terço dos saltos de pilotos o pára-quedas não abria. Aos poucos, a "tecnologia" e, conseqüentemente, a segurança, evoluiu. Os pilotos e as tropas foram obrigados a dobrar seus próprios pára-quedas, além da alça de abertura manual se instituiu uma segunda no avião, depois um segundo pára-quedas foi adicionado. Ou seja, por meio de uma sucessão de pequenas inovações à mesma tecnologia básica a segurança aumentou significativamente. Não obstante, até hoje, de vez em quando um pára-quedista civil ou militar se estatela no solo. É por isso que dizemos que o pára-quedas é inerentemente inseguro.
Acidentes nucleares podem ser classificados em duas categorias. Aqueles que eram chamados no passado "Síndrome da China", ou seja, aqueles em que o núcleo do reator se funde, e os demais, em que há fuga de parcelas limitadas de material radioativo. Apenas o acidente de Chernobil (URSS), com seus milhões de vítimas, pertence à primeira categoria. O de Three Milles Island (E.U.A.), que poderia ter se tornado um outro, foi abortado inexplicavelmente. Os inúmeros outros, com e sem vítimas fatais, decorrem fundamentalmente de falha humana, quer no projeto, quer na operação. Os muitos indiscutíveis avanços tecnológicos praticamente eliminam a possibilidade desse segundo tipo de acidente e reduzem a probabilidade de fusão do núcleo do reator. Todavia, é consenso da comunidade que, no âmbito da tecnologia de água leve, é impossível atingir segurança absoluta, como também acontece com o pára-quedas.
Angra 3 é um projeto de meados da década de 70, uma tecnologia obsoleta em um território em acelerada evolução. Seriam necessários US$ 2 bilhões para finalizá-la, e pouco conhecimento seria adicionado. Com esses recursos seria possível desenvolver e construir uma série de pequenos reatores (entre 100 e 300 MW), inclusive aqueles relativos às tecnologias ditas de altas temperaturas (HTR e VHTR), que são inerentemente seguros.
Essa opção tem vantagens econômicas e estratégicas sobre as duas propostas dos dois ministérios em conflito. De um lado, é óbvia a importância de pequenos reatores em uma rede de distribuição extensa como a nossa. Em segundo, também não restam dúvidas quanto à enorme vantagem tecnológica e geopolítica da capacitação nacional na produção de reatores nucleares em confronto com a simples aquisição de mais um reator idêntico àquele já em operação e baseado em uma tecnologia em obsolescência. O que não pode ser subestimado, entretanto, é a importância de um programa dinâmico e fortemente nacionalizado em tecnologia nuclear.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 73, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

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