São Paulo, terça-feira, 03 de março de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Reforma tributária desconstitucionalizada

ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO


Estaremos fadados a não ter a reforma tributária? Enquanto focarmos a ampla reforma da Constituição, o resultado será frustrante

HÁ NO BRASIL quase unanimidade sobre a necessidade de uma reforma tributária. Apesar disso, as inúmeras tentativas de reforma não tiveram êxito. Como todos são a favor de tal mudança, mas ela não acontece, lembrei-me da famosa frase de Nelson Rodrigues: "Toda unanimidade é burra". Parece que a unanimidade é apenas fruto de uma vontade pró-reforma, politicamente correta, porém indefinida.
Esse apoio perdura enquanto permanece a indefinição. Basta começar a especificar o conteúdo das mudanças para desavenças florescerem e novas reivindicações prosperarem. É quando a reforma é paralisada.
Estaremos assim fadados a não ter a reforma? Enquanto continuarmos a sonhar com uma ampla reforma constitucional que resolva todos os problemas tributários, o resultado será frustrante. Felizmente, efetivo progresso pode ser obtido com abordagens focadas em problemas específicos. É preciso verificar o que está errado e ver se a correção requer alteração na Constituição. Analisemos as principais críticas que são feitas ao sistema tributário do Brasil.
1) Alta carga tributária: essa é a maior reclamação do setor privado. Mas não é matéria constitucional. O total de tributos pagos depende de suas alíquotas -que são fixadas por meio de legislação infraconstitucional e não pela Constituição.
2) Regressividade do sistema tributário: alguns estudos indicam que o sistema tributário brasileiro é injusto porque proporcionalmente os mais pobres pagam mais impostos do que os mais ricos. Impostos indiretos sobre o consumo -por exemplo, o ICMS- são regressivos porque as alíquotas são iguais para todos os compradores. Como os mais ricos, por pouparem parte de seus ganhos, consomem parcela menor de sua renda em relação aos mais pobres, fica claro que, em se tratando da renda, os mais ricos pagam menos impostos.
Para corrigir essa deficiência, não é necessária mudança na Constituição. Bastaria alterar a legislação do Imposto de Renda para torná-la mais progressiva. Além do mais, a Constituição indica que o ICMS "poderá ser seletivo, em razão da essencialidade". A tributação com alíquotas mínimas dos bens da cesta básica já conferiria alguma progressividade ao ICMS. A correção da eventual regressividade do sistema tributário brasileiro não exige mudança constitucional. Bastam alterações na legislação do Imposto de Renda e na do ICMS.
3) Guerra fiscal: a atual Constituição estabelece que cabe à lei complementar "regular a forma como... incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados". E a legislação já regulou a matéria. O problema é que ela não está sendo obedecida. Uma eventual mudança na Constituição -proibindo o que já é proibido- teria enorme probabilidade de ter o mesmo destino: não ser obedecida.
Uma proposta para acabar com a guerra fiscal é estabelecer que o imposto seja devido no Estado de destino (consumo) da mercadoria e não no de origem (produção). O que define quanto da arrecadação fica no Estado produtor e quanto vai para o consumidor é a alíquota interestadual. Com alíquota zero, toda a arrecadação pertence ao Estado de destino. Com essa sistemática de cobrança, a guerra fiscal de atração de empresas por meio de isenções do ICMS acaba por falta de munição. Ora, para isso não é preciso reforma constitucional. A Constituição prevê que a fixação das alíquotas interestaduais seja feita por uma resolução do Senado. Basta usar essa prerrogativa.
4) Complexidade do sistema tributário brasileiro: é enorme a complexidade para pagar imposto no Brasil. Estudos indicam que a quantidade de horas gastas para pagar imposto no Brasil é a maior do mundo. Essa complexidade, entretanto, não deriva do desenho constitucional, mas de um emaranhado de leis, normas e interpretações em constante mudança.
É fruto da variabilidade e da ambiguidade da legislação infraconstitucional, das inúmeras obrigações acessórias, das interpretações conflitantes e de outros fatores que não são considerados matéria constitucional. Há uma outra questão que é constitucional. É a referente à repartição de tributos entre a União, os Estados e os municípios. Mas essa é mais uma discussão de pacto federativo do que de reforma tributária.
A raiz dos problemas tributários não está na Constituição. De nada adiantará reformá-la se a caótica legislação infraconstitucional seguir em permanente mutação. A premente reforma tributária precisa mudar de foco. Não é a Constituição que deve ser reformada. É a legislação tributária que deve ser melhorada.


ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO , doutor em economia pela Universidade Yale (EUA), é professor titular da FEA-USP e presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial-ETCO.

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