São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O significado da visita de Hillary ao Brasil

JULIA E. SWEIG


A viagem de Hillary parece refletir uma vontade de fazer do relacionamento com o Brasil uma prioridade da política externa dos EUA

EM SUA campanha para a Presidência, a senadora Hillary Rodham Clinton mal falou uma palavra sobre o Brasil. Como secretária de Estado, porém, ela reconhece o Brasil como o país mais poderoso da América do Sul e uma potência global em ascensão. A visita dela pode abrir caminho para a chegada do presidente Obama, mais tarde neste ano.
Embora ainda seja cedo para avaliar, a viagem de Clinton parece refletir uma vontade política de fazer do relacionamento com o Brasil uma prioridade estratégica da política externa dos Estados Unidos.
Clinton compreende que os Estados Unidos precisam se adaptar a um mundo multipolar, cooperando com potências como China, Rússia e Índia.
Mas em 2009 sua diplomacia com o Brasil foi prejudicada por disputas em torno de Honduras, bases militares na Colômbia, política interna e tensões ligadas ao Irã.
Tendo começado com tal atraso, a impressão que se tem é a de que a visita da secretária de Estado é permeada de urgência: os EUA estão perdendo terreno, à medida que a América Latina cria mais uma organização regional que os exclui. Além disso, a atenção do Brasil não vai tardar a voltar-se para dentro, quando sua campanha presidencial começar para valer.
Visitar o Brasil talvez seja o passo mais fácil. Os Estados Unidos têm pouco espaço para manter seu foco de atenção sobre o Brasil. A agenda interna de Obama vem sendo consumida pelas questões do desemprego, da reforma da saúde, da infraestrutura e da solvência fiscal. No campo externo, a principal atenção vai continuar sendo Afeganistão, Paquistão, Irã, Iraque e China.
É possível que falte incentivo ao Brasil para investir no relacionamento com os EUA tanto quanto a secretária Clinton possa desejar. Também focado em grande medida em questões internas, o Brasil sobreviveu à crise financeira global, vem construindo uma classe média crescente, reduzindo a pobreza e a desigualdade e consolidando a democracia. Hoje a corrupção, a criminalidade, a violência e as drogas são as questões prioritárias na agenda de seu eleitorado.
No plano internacional, os últimos sete anos impeliram o Brasil para o palco global. Os EUA representam apenas uma parte da agenda global brasileira: a ênfase dada pelo Brasil à multipolaridade e ao multilateralismo parte da premissa do declínio da influência norte-americana.
Em vista de sua insistência histórica a respeito da autonomia em relação às potências maiores, dificilmente se poderia esperar que o Brasil hoje subordinasse seus interesses aos dos Estados Unidos. Apesar disso, para os americanos, o etos brasileiro de autonomia em matéria de política externa às vezes aparenta ser uma tentativa deliberada de frustrar a diplomacia norte-americana. Tais percepções equivocadas correm o risco de funcionar como obstáculos no caminho das boas intenções.
Outro impedimento potencial é o fato de que os EUA ainda agem como potência imperial. Quando Hillary Clinton fala em "parceria", será que os brasileiros pensam que o que ela realmente quer dizer é deferência para com os interesses dos EUA?
Para tratar de problemas da agenda bilateral, regional e global, Clinton terá que penetrar o ceticismo de Brasília em relação ao compromisso de Washington com uma troca real de mão dupla. O Brasil terá que dar a ela o benefício da dúvida e expor com clareza o que quer dos Estados Unidos, aproveitando a visita e o que virá depois dela para avaliar bem o que a administração Obama quer do Brasil e o que será capaz de produzir.
Em termos bilaterais, a agenda será dominada por tarifas, impostos, comércio, incluindo até mesmo questões de gênero e raça. O Haiti virá à tona para ilustrar o talento dos dois países mais do que disputas em torno da Colômbia ou de Honduras. A secretária de Estado ouvirá a visão que o Brasil tem da região andina e sua visão para a integração sul-americana.
Talvez ela explique o ritmo glacial da política de Washington para Cuba. As discussões sobre mudanças climáticas e finanças globais vão avançar. Mas é o Irã que provavelmente ocupará o grosso do tempo.
Hoje em dia dura em relação a essa questão, a secretária Clinton insiste que as potências emergentes devem unir-se à pressão norte-americana e europeia exercida sobre o Irã, enquanto o governo Lula, depois do Iraque, vê as sanções como caminho que conduzirá ao uso de força militar.
Por mais que se possa repudiar o abraço público dado pelo presidente Lula em Ahmadinejad, o líder que nega a existência do Holocausto, o canal de comunicação que Brasília possui com uma Teerã cada vez mais caótica e imprevisível não deve ser desprezado ou visto simplesmente como tomada de posição antiamericana.
A visita de Clinton não vai resultar na intimidade de um "relacionamento especial" nem mesmo no abraço incômodo que Washington com frequência dá a seus melhores amigos na região. Mas, se a secretária deixar o país com uma apreciação da singularidade do Brasil -e os brasileiros apreciam plenamente a singularidade dos Estados Unidos-, é possível que comece a emergir uma forma de parceria que seja produtiva.


JULIA E. SWEIG é membro sênior do Conselho de Relações Exteriores, sediado em Nova York, onde dirige o Programa América Latina e o Programa Global Brasil.

Tradução de Clara Allain.

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