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TENDÊNCIAS/DEBATES
Ainda há juízes no Brasil
GUSTAVO TEPEDINO
O recente veto presidencial à emenda nº 3 do projeto de lei que institui a
Super-Receita confunde
o cidadão comum
O RECENTE veto presidencial à
emenda nº 3 do projeto de lei
que institui a Super-Receita,
destinada a racionalizar a fiscalização
de tributos, confunde o cidadão comum. O dispositivo vetado impedia
que a autoridade fiscal, por si mesma,
sem decisão judicial, viesse a desconsiderar pessoa jurídica legalmente
constituída no âmbito da qual fossem
reconhecidas relações de trabalho,
com ou sem vínculo empregatício.
Segundo o preceito repelido pelo
presidente da República, se a autoridade fiscal desconfia da lisura de uma
sociedade prestadora de serviços, formada por jornalistas, advogados, artistas ou médicos, deve recorrer ao
Judiciário, sem ser dado ao fiscal simplesmente desconsiderá-la, punindo
os que dela participam e tratando
seus sócios, mesmo que contra a vontade destes, como empregados fraudulentamente submetidos à estrutura societária.
Com o veto presidencial, se poderia
imaginar que, a partir da nova lei, o
fiscal poderia prescindir inteiramente do recurso ao Judiciário. O perigo
maior é que os fiscais, agora, empunhando o veto obtido no Planalto, se
julguem mesmo no direito de fazê-lo.
Tal conclusão, contudo, não é verdadeira. A legislação brasileira, felizmente, condiciona de forma exaustiva a ação do fiscal, nessas hipóteses,
ao prévio controle judicial. O dispositivo era importante porque coerente
com outras leis em vigor, especialmente com o artigo 129 da lei nº
11.196, de 21 de novembro de 2005, e
com o artigo 50 do Código Civil.
O projeto de lei mostrava-se deliberadamente redundante, justamente
para evitar que, no afã da fiscalização,
a autoridade fazendária pudesse sentir-se legitimada a flechar à morte os
princípios constitucionais da livre-iniciativa e da legalidade, nos quais se
fundamentam a constituição das pessoas jurídicas.
A importância do dispositivo vetado, portanto, consiste menos em
qualquer perspectiva de inovação e
mais no valor simbólico de sua não
exclusão, já que o veto coloca em dúvida a imprescindibilidade da via judicial para controles desse jaez.
Repita-se à exaustão: a autoridade
fiscal pode e deve, com os aplausos de
toda a sociedade brasileira, desconsiderar empresas fantasmas que nunca
existiram, reprimir a atividade econômica simulada, denunciar e extirpar a vergonhosa exploração de trabalho escravo que pretende passar
por relação empregatícia. Essas práticas criminosas devem ser reprimidas
com todo o rigor, configuram tipos
penais e suscitam a ação enérgica não
só dos fiscais setoriais mas também
do Ministério Público da União.
O cenário de delito e fraude, contudo, não justifica a atribuição à autoridade fazendária do poder de transformar inocentes em culpados e, segundo seu alvedrio, desconsiderar sociedades constituídas e com objeto lícito, sem controle judicial.
Mostra-se inconcebível, em última
análise, que empresas legalmente
constituídas sejam tratadas como fora-da-lei e que a autoridade fiscal possa, de maneira discricionária, determinar quais as pessoas jurídicas que
devam ser preservadas e quais devam
ser simplesmente eliminadas.
Daqui a importância do preceito
vetado, que havia sido introduzido no
projeto de lei -diga-se de passagem-
por 62 senadores da República.
Segundo o artigo 66, parágrafo 4º,
da Constituição, o veto presidencial
poderá ainda ser rejeitado pelo voto
da maioria absoluta dos deputados e
senadores em sessão conjunta do
Congresso Nacional. Mais do que
uma mera demonstração de força política, a resposta dos parlamentares,
nesse caso, serviria para traduzir a
preocupação com o equilíbrio entre
os Poderes e com o amadurecimento
da convivência democrática.
Muito já se disse sobre o pragmatismo das decisões políticas, as quais favorecem, muitas vezes, falsos maniqueísmos, de maneira que, para a opinião pública, as decisões tomadas pareçam refletir a luta do bem contra o
mal. A visão simplista, no caso da Super-Receita, associaria o veto presidencial a um suposto incremento do
poder de fiscalização, o que seria bom
-cogitaria o cidadão comum- no cenário de falcatruas e impunidades.
A fiscalização do fiscal pelo Judiciário, contudo, fortalece o poder do Estado e impede que, por conta de arbitrariedades praticadas em nome da
lei, a própria autoridade perca credibilidade. Assim como o célebre moleiro que, no século 18, opôs-se à pretendida demolição de seu moinho por
Frederico 2º da Prússia, advertindo
altivamente ao rei que ainda havia
juízes em Berlim, é preciso que o
Congresso Nacional lembre ao Executivo que, sem o Judiciário, não haverá atuação fiscal justa e eficaz.
GUSTAVO TEPEDINO, 49, doutor pela Universidade de
Camerino (Itália), é professor titular da Faculdade de Direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), da qual foi diretor de 1996 a 2000. É autor, entre outras
obras, de "Temas de Direito Civil".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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