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Entre Deus e Darwin
Brasileiros parecem ter discernimento intuitivo de que questões de ciência não competem com convicção religiosa
"UMA APAIXONADA predileção por besouros." Essa foi
a resposta de J.B.S. Haldane (1892-1964) quando lhe
perguntaram o que a teoria da
seleção natural revelava a respeito dos desígnios de Deus. O biólogo britânico, que era ateu, aludia de forma irônica à fantástica
abundância de insetos coleópteros na natureza.
Pesquisa Datafolha publicada
ontem revelou que apenas 8%
dos brasileiros endossariam Haldane, ao concordar que os seres
vivos são produto de lentíssima
evolução na qual variações fortuitas, mas vantajosas à sobrevivência e reprodução, se disseminam e acabam por dar origem a
novas espécies, mais adaptadas a
seu ambiente. Seriam os darwinistas "puros".
Deles discordam expressiva
parcela de 25% dos brasileiros,
os quais se mostram criacionistas, pois acreditam que os seres
vivos tenham sido concebidos e
materializados por Deus num
único ato criativo.
Nos EUA, onde estão enraizadas facções do cristianismo
evangélico que tomam as escrituras sagradas ao pé da letra, os
criacionistas são estimados em
45%. Não surpreende que seja
aquele o país onde as implicações filosóficas e religiosas do
darwinismo alcancem estridente controvérsia, que já deu ensejo a disputas judiciais renhidas a
fim de preservar o ensino laico
de contaminações religiosas.
Pesquisas parecidas realizadas
na Europa revelam cenário variado. Em países como Itália, Irlanda e Polônia, o índice de criacionistas se aproxima do brasileiro, a sugerir que nas nações de
maioria católica essa questão
não é relevante, talvez nem pertinente. Os católicos sempre estiveram à vontade com interpretações figuradas do evangelho.
Com efeito, a maioria dos brasileiros (59%) combina a aceitação do processo darwiniano com
a fé na condução e supervisão divina, situadas num plano superior ao da natureza. Embora inverossímil aos olhos de quem for
ateu, essa conciliação de crenças
não é absurda. Sugere, ao contrário, um discernimento intuitivo
de que questões de ciência não
competem com questões de convicção religiosa. São campos que
correspondem a dimensões diferentes da consciência humana.
Não é menos verdade que o
darwinismo dito "puro" tende a
crescer conforme aumenta a
educação formal. Seus índices
mais altos na Europa, por exemplo, estão nos países escandinavos. Já na Turquia, mais da metade da população se declara criacionista. É de supor que em países de predomínio islâmico essa
marca se repita ou seja suplantada, pois o Islã tende a adotar uma
visão mágica e literal do advento
do homem na Terra.
O levantamento Datafolha desencoraja certa tendência a importar uma polêmica que pode
fazer sentido nos EUA, mas que
não se sustenta em nossa realidade cultural. Faz algumas décadas, o antropólogo Roberto DaMatta identificou como desafio
brasileiro reunir a rua e a casa, a
lei e a família, o sobrenatural e o
prosaico. Parece que em matéria
de religião e darwinismo, esse
sincretismo à brasileira já vigora.
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