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Confiança zero
AUGUSTO DE FRANCO
Os mais espertos já perceberam que, ficando nas mãos de Lula, tendem a ser descartados como bagaços chupados de laranja
EM ARTIGO publicado nesta Folha dias antes da famosa entrevista do ex-deputado Roberto
Jefferson sobre o mensalão (2/6/2005 e 6/6/2005, respectivamente),
vaticinei que o governo Lula naufragaria por obra de seus próprios aliados. Cerca de dois meses depois, em
outro artigo neste mesmo jornal,
acrescentei que o governo só conseguiria se salvar com a ajuda das oposições. Quase ninguém estava vendo as
coisas assim. Mas foi o que aconteceu.
Entretanto, os fatores desestabilizadores que levaram ao primeiro naufrágio não foram afastados. Pelo contrário, se ampliaram. Então vai aqui a
terceira previsão, da qual, novamente, a maioria dos analistas discordará:
este governo tem tudo para não acabar bem.
Não que a "oposição" -que o salvou
do naufrágio da primeira vez- vá agora criar-lhe dificuldades. Desse susto,
Lula não morre. Aliás, ocorre hoje um
fenômeno que ainda será tema de
muitas teses de doutorado: os tucanos
estão neste momento travando uma
disputa interna para ver quem pode
servir melhor ao governo, quem consegue ser mais claudicante, mais adesista, mais desfibrado, mais esquecido
de seus deveres oposicionistas, mais
capaz de trair a vontade dos 37 milhões de brasileiros que depositaram
sua confiança no partido em 2006.
Mas a diferença da situação de
2005 para a de hoje é que o PSDB e os
"neo-DEM" não podem mais sustentar o governo como faziam.
A coisa está se complicando para os
amigos, para os correligionários e para os aliados de Lula, porquanto a ausência de oposição está também inviabilizando o emprego da desculpa
pré-fabricada de que os culpados por
tudo são os neoliberais ou FHC. A
"herança maldita" já é passado.
Aécio sempre foi aliado de Lula.
Tasso parece ter entrado para o time
do mineiro. E Serra, para bem administrar São Paulo, não quer criar problemas. Na ausência de inimigos, as
culpas pela incapacidade de governar
de Lula vão começar a recair sobre
quem, senão sobre os amigos?
A julgar pelo histórico mais recente
-cujas vítimas foram Aldo, Jobim, o
ministro da Aeronáutica, os controladores de vôo e seu próprio companheiro Bernardo-, poder-se-ia dizer
que a capacidade de Lula de trair os
amigos é inesgotável; sim, mas a capacidade desses amigos de se deixarem
trair tem limite.
Os mais espertos já perceberam
que, ficando nas mãos de Lula, tendem a ser descartados como bagaços
chupados de laranja. As velhas raposas do PMDB, por exemplo, já anteviram que é grande o risco de terminar
na sarjeta e refazem seus cálculos.
É natural que, diante de tantos precedentes, os aliados se tornem ressabiados, cínicos e predadores. Fingindo que acreditam na palavra de Lula,
vão exigir garantias sempre maiores,
tentando tirar o máximo que puderem do governo para compensar, antecipadamente, os prejuízos que terão mais adiante. A capacidade de
traição de Lula insufla a desconfiança
dos seus aliados, e tudo isso alimenta
um círculo vicioso ou uma espécie de
espiral da inconfiabilidade. Ora, tal situação não é sustentável.
Nenhum grupo, nenhuma configuração política -nem mesmo um bando ou uma gangue- consegue subsistir sem um mínimo de confiança, sem
uma "cola", sem uma "alma" que lhe
dê organicidade.
Para manter uma coalizão de governo, não basta comprar -com dinheiro, cargos ou outras prebendas-
grupos ou pessoas. Mesmo quando
estão dispostas a vender suas consciências, mesmo recebendo propinas,
as pessoas querem ter a segurança de
algum futuro pela frente, de que não
serão traídas na próxima esquina.
Mas os aliados instrumentais de
Lula já viram que isso não terão neste
governo de "confiança zero".
Se a imprensa permanecer livre, o
atual governo tem grandes chances de
acabar mal. Ainda que as oposições
tentem, mais uma vez, salvá-lo da ruína, os aliados fisiológicos de Lula se
encarregarão (em parte involuntariamente, por razões de sobrevivência)
da tarefa de corroê-lo.
Ontem foi o "banditismo (e a corrupção) de Estado" que veio à tona
com Waldomiro-Dirceu e o mensalão. Amanhã, a natureza degenerada
do governo se manifestará em outras
coisas. Tanto faz. A política não é feita
de coisas, mas de relações de forças.
Construído sobre o discurso inverídico e inteiramente baseado na popularidade de um líder incapaz de investir no sucesso alheio, o governo Lula
ainda não tem força própria para se
sustentar nem capital social suficiente para aglutinar forças externas de
modo duradouro.
Não precisaremos esperar muito.
Basta que o (falso) governo de coalizão deste segundo mandato comece a
funcionar para que apareçam os sintomas de putrefação.
AUGUSTO DE FRANCO, 56, é analista político do blog
www.democracia.org.br e autor, entre outros livros, de
"Capital Social". Foi membro do comitê-executivo do Conselho da Comunidade Solidária durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
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