São Paulo, quinta-feira, 03 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Confiança zero

AUGUSTO DE FRANCO

Os mais espertos já perceberam que, ficando nas mãos de Lula, tendem a ser descartados como bagaços chupados de laranja

EM ARTIGO publicado nesta Folha dias antes da famosa entrevista do ex-deputado Roberto Jefferson sobre o mensalão (2/6/2005 e 6/6/2005, respectivamente), vaticinei que o governo Lula naufragaria por obra de seus próprios aliados. Cerca de dois meses depois, em outro artigo neste mesmo jornal, acrescentei que o governo só conseguiria se salvar com a ajuda das oposições. Quase ninguém estava vendo as coisas assim. Mas foi o que aconteceu.
Entretanto, os fatores desestabilizadores que levaram ao primeiro naufrágio não foram afastados. Pelo contrário, se ampliaram. Então vai aqui a terceira previsão, da qual, novamente, a maioria dos analistas discordará: este governo tem tudo para não acabar bem.
Não que a "oposição" -que o salvou do naufrágio da primeira vez- vá agora criar-lhe dificuldades. Desse susto, Lula não morre. Aliás, ocorre hoje um fenômeno que ainda será tema de muitas teses de doutorado: os tucanos estão neste momento travando uma disputa interna para ver quem pode servir melhor ao governo, quem consegue ser mais claudicante, mais adesista, mais desfibrado, mais esquecido de seus deveres oposicionistas, mais capaz de trair a vontade dos 37 milhões de brasileiros que depositaram sua confiança no partido em 2006.
Mas a diferença da situação de 2005 para a de hoje é que o PSDB e os "neo-DEM" não podem mais sustentar o governo como faziam.
A coisa está se complicando para os amigos, para os correligionários e para os aliados de Lula, porquanto a ausência de oposição está também inviabilizando o emprego da desculpa pré-fabricada de que os culpados por tudo são os neoliberais ou FHC. A "herança maldita" já é passado. Aécio sempre foi aliado de Lula.
Tasso parece ter entrado para o time do mineiro. E Serra, para bem administrar São Paulo, não quer criar problemas. Na ausência de inimigos, as culpas pela incapacidade de governar de Lula vão começar a recair sobre quem, senão sobre os amigos?
A julgar pelo histórico mais recente -cujas vítimas foram Aldo, Jobim, o ministro da Aeronáutica, os controladores de vôo e seu próprio companheiro Bernardo-, poder-se-ia dizer que a capacidade de Lula de trair os amigos é inesgotável; sim, mas a capacidade desses amigos de se deixarem trair tem limite.
Os mais espertos já perceberam que, ficando nas mãos de Lula, tendem a ser descartados como bagaços chupados de laranja. As velhas raposas do PMDB, por exemplo, já anteviram que é grande o risco de terminar na sarjeta e refazem seus cálculos.
É natural que, diante de tantos precedentes, os aliados se tornem ressabiados, cínicos e predadores. Fingindo que acreditam na palavra de Lula, vão exigir garantias sempre maiores, tentando tirar o máximo que puderem do governo para compensar, antecipadamente, os prejuízos que terão mais adiante. A capacidade de traição de Lula insufla a desconfiança dos seus aliados, e tudo isso alimenta um círculo vicioso ou uma espécie de espiral da inconfiabilidade. Ora, tal situação não é sustentável.
Nenhum grupo, nenhuma configuração política -nem mesmo um bando ou uma gangue- consegue subsistir sem um mínimo de confiança, sem uma "cola", sem uma "alma" que lhe dê organicidade.
Para manter uma coalizão de governo, não basta comprar -com dinheiro, cargos ou outras prebendas- grupos ou pessoas. Mesmo quando estão dispostas a vender suas consciências, mesmo recebendo propinas, as pessoas querem ter a segurança de algum futuro pela frente, de que não serão traídas na próxima esquina.
Mas os aliados instrumentais de Lula já viram que isso não terão neste governo de "confiança zero".
Se a imprensa permanecer livre, o atual governo tem grandes chances de acabar mal. Ainda que as oposições tentem, mais uma vez, salvá-lo da ruína, os aliados fisiológicos de Lula se encarregarão (em parte involuntariamente, por razões de sobrevivência) da tarefa de corroê-lo.
Ontem foi o "banditismo (e a corrupção) de Estado" que veio à tona com Waldomiro-Dirceu e o mensalão. Amanhã, a natureza degenerada do governo se manifestará em outras coisas. Tanto faz. A política não é feita de coisas, mas de relações de forças.
Construído sobre o discurso inverídico e inteiramente baseado na popularidade de um líder incapaz de investir no sucesso alheio, o governo Lula ainda não tem força própria para se sustentar nem capital social suficiente para aglutinar forças externas de modo duradouro.
Não precisaremos esperar muito.
Basta que o (falso) governo de coalizão deste segundo mandato comece a funcionar para que apareçam os sintomas de putrefação.


AUGUSTO DE FRANCO, 56, é analista político do blog www.democracia.org.br e autor, entre outros livros, de "Capital Social". Foi membro do comitê-executivo do Conselho da Comunidade Solidária durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Oscar Vilhena Vieira: Que vida, biológica ou moral?

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.