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São Paulo, terça-feira, 03 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O governo e os partidos de governo

CARLOS EDUARDO MENA

Uma das relações mais complexas do sistema democrático, especialmente em um regime presidencialista, tem a ver com as relações que se estabelecem ou devem ser estabelecidas entre o Executivo e os partidos de governo, ou aliança de partidos governamental.
Nas ciências sociais, e especificamente na ciência política, algo já foi analisado acerca de como estruturar uma relação fluida, que, respeitando a autonomia e as características próprias dos partidos, possa ao mesmo tempo assegurar a governabilidade democrática e a eficácia na tomada de decisões dos governos. Não obstante a realidade é sempre mais complexa que os modelos que se pretende desenhar ou as fórmulas que se procura implementar. Por outro lado, as "culturas políticas" geram especificidades, em cada país, que resultam difíceis de extravasar. No entanto a experiência de outras situações históricas pode resultar útil para abordar essa problemática.
É preciso destacar que essa relação pode ser ainda mais difícil quando se trata de partidos que têm estado por um longo período na oposição antes de assumirem posições de responsabilidade governamental. Dessa forma, a adequada articulação entre o governo e os partidos políticos que o sustentam pode se tornar ainda mais tensa quando o projeto político que se procura realizar está marcado pelo sinal da "mudança", ao qual a cidadania adere numa importante proporção. A experiência de muitas democracias latino-americanas nos demonstra que, para que os processos de transformação social em democracia sejam efetivos e perduráveis, necessita-se de grandes consensos dos atores sociais, que devem ser expressos em alianças políticas o mais amplas e estáveis possíveis.
A cidadania procura mudanças, mas também requer um mundo caracterizado pela incerteza de algumas certezas fundamentais. Por outro lado, as mudanças têm de ser internalizadas na consciência coletiva das pessoas, portanto é preciso colocar ênfase naquilo que afeta a vida cotidiana das mesmas, mais que nos âmbitos institucionais.
Outro fator relevante refere-se ao tempo. Como toda grande obra humana, as transformações que pretendem perdurar são realizadas no transcurso do tempo. Mas o tempo não é só um prazo. O tempo é também a percepção diferente que dele têm diversos atores sociais. Assim, não é o mesmo o tempo para um jovem e para uma pessoa de idade avançada; não é o mesmo o tempo para um empresário e para um trabalhador; não é o mesmo o tempo para um desempregado e para alguém que tem emprego; não é igual o tempo para quem está integrado aos circuitos das sociedades transnacionalizadas e para quem está excluído ou marginalizado. Não é o mesmo o tempo dos partidos de governo e o tempo do governo.


A história da América Latina está repleta de exemplos de partidos que, na atividade de governo, foram se fracionando


Os partidos têm uma tarefa que transcende o tempo do governo. Seus projetos políticos devem ser desenvolvidos num processo mais longo que os períodos de governo. Nesse contexto, os partidos de governo transcendem o próprio governo. Mas, para que isso seja efetivo, é necessário o êxito do governo que sustentam. Os governos têm de enfrentar as restrições de tempo para tomar decisões oportunas e efetivas, para enfrentar as limitações que impõe a realidade nacional e internacional, para administrar e resolver adequadamente os conflitos da sociedade, para enfrentar os desafios da conjuntura.
O partido ou os partidos de governo, para darem continuidade ao seu projeto histórico, precisam do êxito do tempo do governo. A adequada compreensão dessa complexa inter-relação do transcorrer dos tempos diferentes torna possível construir uma relação adequada, que respeite os ritmos diversos de cada um dos atores e dos respectivos espaços envolvidos.
A sociedade precisa perceber que os partidos de governo assumem sua responsabilidade e são realmente partidos de governo. Isso contribui para a governabilidade democrática de maneira muito significativa. A história da América Latina está repleta de exemplos de partidos que, no transcurso da atividade de governo, foram se fracionando, convertendo-se muitas vezes em verdadeiros partidos dentro dos partidos. Os militantes começaram a ser mais leais à facção do que ao conjunto do partido. Não se trata de ignorar a democracia partidária e impulsionar a discussão de idéias e de opções; ao contrário, isso enriquece a vida partidária, pois estimula o debate de idéias e propostas.
Mas o importante é que os cidadãos percebam que há uma unidade de critérios, objetivos comumente compartilhados, e que as confianças subsistam. De outra maneira, a sociedade vira as costas para esses partidos e lhes nega apoio. Isso afeta a "qualidade da política" e gera desafetos entre os cidadãos com relação a ela, especialmente nos setores jovens, o que contribui para o enfraquecimento da democracia. Esses setores são particularmente sensíveis no mundo globalizado, em que não somente competem os países com seus sistemas produtivos e empresas, mas em que há uma concorrência "sistêmica" na qual se visualiza o país como um todo em suas distintas inter-relações políticas, sociais e econômicas. E, portanto, a estabilidade do sistema político passa a ser um elemento central na forma e no modo como o país se insere no cenário internacional.

Carlos Eduardo Mena, advogado e cientista político, é o embaixador do Chile no Brasil.


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