São Paulo, quarta-feira, 03 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O golpe de Estado permanente

FÁBIO KONDER COMPARATO

Justiça seja feita à criatividade política dos povos ibéricos e latino-americanos. No século 19, fomos os inventores do "pronunciamiento" militar, que tanto sucesso obteve no mundo todo. Mas, já na primeira metade do século 20, o México inaugurava uma técnica bem mais sutil, caracterizada pela quebra da legalidade com o uso de instrumentos legais. A modalidade antiga de golpe de Estado armado desaloja o poder estabelecido e prescinde da manifestação eleitoral do povo. A nova visa conferir uma aparência de legitimidade democrática à manutenção indefinida do poder estabelecido, ainda que com a troca ocasional de governantes.
O Brasil do regime político pós-militar aderiu sem hesitações à nova técnica, com a colaboração eficiente de certos setores do Poder Judiciário, da Polícia Judiciária e do Ministério Público, sob a imprescindível cobertura logística dos meios de comunicação de massa.
A Polícia Federal, a pretexto de cumprir diligência judiciária, desmoraliza publicamente uma governadora de Estado, fazendo abortar a sua pré-candidatura à Presidência da República. Muito antes disso, no entanto, a mesma Polícia Federal iniciara, em completo segredo e mediante fraude na autorização judicial de escuta telefônica, uma "investigação criminal preliminar" sobre pretensos crimes federais praticados por secretários municipais de prefeitura petista, o próprio presidente nacional e o presidente de honra do partido, este último o principal candidato de oposição no pleito presidencial.
Para que a estratégia oficial vingasse, porém, era imprescindível contar com o apoio do Poder Judiciário.
Para tanto, cuidou-se, inicialmente, de proscrever a liberdade de coligações eleitorais, as quais ameaçavam a hegemonia nacional do PSDB. A Justiça Eleitoral foi, então, chamada a intervir preventivamente. Menos de 12 meses antes do pleito de outubro próximo e contra o princípio de que, numa Federação, as eleições estaduais são independentes das federais, determinou o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que as coligações partidárias estaduais obedecessem ao mesmo esquema federal.
Desferiu-se, com isso, um golpe de morte na candidatura de Anthony Garotinho, ao mesmo tempo em que se estimulava o ex-governador fluminense a permanecer no pleito, para dividir a oposição.


É inaceitável que os grandes formadores de opinião se declarem neutros ou imparciais diante desses fatos


Chegou, então, a vez do candidato Ciro Gomes, cujo desempenho em programas políticos de rádio e televisão é notoriamente brilhante. O mesmo TSE é acionado para, em interpretação cavilosa da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, afastar o temido concorrente, confinando-o ao tempo minúsculo do partido no qual se inscreveu, sem poder aparecer no horário reservado aos demais partidos que se coligaram para o lançamento de sua candidatura.
A seguir, surgiu o risco de uma divisão do PMDB, suscetível de enfraquecer o candidato do Planalto. Aí foi preciso intervir cirurgicamente, com urgência, pois uma medida judicial liminar suspendera, na véspera, a realização da convenção nacional do partido. Procurado pelos advogados oficiais do PMDB, o presidente do mesmo Tribunal Eleitoral, ministro Nelson Jobim, explicou-lhes como agir para que o feito lhe fosse encaminhado diretamente, e não a outro integrante do tribunal.
Na madrugada do dia seguinte, mais exatamente às 3h da manhã, Sua Excelência recebe os mesmos advogados em sua casa e determina a cassação da medida liminar.
Faltava a colaboração do Ministério Público. Em quase oito anos de exercício funcional e malgrado seus esforços notórios, o procurador-geral da República não conseguiu vislumbrar a responsabilidade daquele que o nomeou para o cargo, ou de algum de seus ministros, nos diferentes escândalos que os meios de comunicação de massa não conseguiram abafar: as concorrências fictícias em leilões de privatização, a compra de votos para aprovação da emenda da reeleição, a fraude na concorrência do Sivam, o suborno de parlamentares para impedir a instalação da CPI da corrupção no governo federal, entre muitos outros episódios.
Abandonando, porém, essa atitude, digamos, de cautelosa prudência, o dr. Geraldo Brindeiro se apressa em pedir a abertura de inquérito criminal contra o presidente nacional do PT, procurando envolvê-lo em acusações de extorsão na Prefeitura de Santo André. Ao mesmo tempo, estabelece convênio com o Ministério Público do Estado de São Paulo, que, por curiosa coincidência, passou a se interessar prioritariamente pelo assunto.
Não importa saber se essas altas autoridades têm consciência do que se trama. O inconcebível é que os dirigentes dos principais órgãos de comunicação de massa sejam cegos ou ingênuos, a ponto de pretenderem desconhecer a gigantesca fraude eleitoral em curso. É inaceitável que os grandes formadores de opinião se declarem neutros ou imparciais diante desses fatos.
A neutralidade, aqui, não passa de dissimulada cumplicidade com o assassínio de toda a esperança. Brasileiros, vamos resistir ao golpe permanente e defender a nossa dignidade.


Fábio Konder Comparato, 65, jurista, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Faculdade de Direito de Coimbra. É autor, entre outra obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos" (Saraiva).



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