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MARINA SILVA
Complexo
de Lear
DURANTE CURSO de especialização na Universidade de
Brasília, estudei a obra "Rei
Lear", de Shakespeare. Talvez a
tragédia possa nos ajudar a entender um pouco a política brasileira.
Ao sentir-se velho, Lear decide
abdicar da sua condição de rei, do
enfadonho encargo de governar.
Chama as filhas -Goneril, Regana
e Cordélia- para dividir seus bens
e poder, anunciando que seria mais
agraciada aquela que lhe fizesse a
maior declaração de amor. E impõe
outra condição: enquanto vivesse,
o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe,
até mesmo o amor de suas filhas e
súditos. Quer deixar de ser rei sem
perder a majestade.
Cordélia, a mais jovem, com
quem o rei mais se identificava, e
que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.
O que torna sua jornada trágica e
dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não
quer morrer, tornar-se passado.
Quer ser sucessivo como é a vida,
reviver a fase do prazer de poder.
Quer ter séquito e até mesmo um
bobo para ninar seu desamparo.
Mas ninguém pode impunemente
regredir sem ser atormentado pelo
fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear
agarra-se às palavras de Goneril e
Regana. E rejeita amargamente a
rebeldia de Cordélia, que só sabia
sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai,
obrigando-o a perceber esse amor
no único lugar onde deveria estar:
no resultado afetivo de suas relações pessoais.
Não por acaso desmorona o
mundo de Lear. O que antes era tão
bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e
medo, segurança e desamparo. A
loucura de não mais saber quem é.
O alto preço por ter almejado e
transformado em "ato" o desejo de
retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que
um dia foi. Ele só existe no mundo
daqueles que o aceitam e o amam
tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como
aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu
abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser.
Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras
do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".
Genial Shakespeare, trágico rei,
frágil humanidade de sempre, que
não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que
desiste de ressignificar-se, e quer
tão somente repetir o prazer da
sensação vivida nas ilusões de majestade.
contatomarinasilva@uol.com.br
MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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