São Paulo, segunda-feira, 03 de setembro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A espera por um fígado que não chegará

HOEL SETTE JÚNIOR

A situação dos portadores de doenças hepáticas crônicas e cirrose no Brasil é grave. Essas doenças são a quinta causa de óbitos para os homens na faixa etária de 24 a 64 anos, com a cifra anual assustadora de mais de 44 mil óbitos apenas no Estado de São Paulo.
O país tem de 3 milhões a 8 milhões de infectados apenas pelo vírus da hepatite C, maior causa de indicação de transplante hepático em todas as estatísticas. No final desta década, estima-se que o número de óbitos por doenças hepáticas e cirrose terá aumentado 223%; a necessidade de transplantes terá aumentado 525%, por causa da hepatite C.
No mês passado, houve uma reunião do Conselho Federal de Medicina, em Brasília, com a participação de representantes do Ministério da Saúde e da sociedade civil. Em pauta, os critérios para a alocação de fígados para transplantes. Eu estava entre os que defenderam dar prioridade para os pacientes mais graves. Atualmente, vigora o critério cronológico rígido.
Registrado e não explicado ficou o fato de que o critério cronológico rígido é apenas aplicado aos transplantes de fígado, diferentemente do que ocorre com coração, pulmão e até mesmo rins.
Análise dos números da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo mostra que, de julho de 1997 a janeiro de 2001, dos 595 pacientes que faleceram na lista de espera, 224 (37,6%) faleceram nos três primeiros meses de espera; 115 (19,3%) faleceram do quarto ao sexto mês. No total, 489 pacientes (82,2%) morreram dentro do primeiro ano depois de incluídos na lista. É bom repetir: após o primeiro ano de inclusão na lista, 82% dos pacientes não transplantados morreram. Mais preocupante é que, após 48 meses de implantação da lista por critérios cronológicos, passou-se instituir a "fraude da inscrição precoce", por causa do acúmulo de óbitos.
Essa forma -com critério cronológico rígido- de alocar fígados aos pacientes portadores de doença hepática em fase terminal fere os princípios da ética médica, da justiça distributiva e dos direitos humanos. E, ainda por cima, não encontra similaridade na União Européia e nos EUA. Obediência ao princípio de gravidade é dogma sagrado na arte da medicina.
A sociedade deve tomar conhecimento de que é prerrogativa do médico classificar os pacientes mais graves e prestar socorro em caráter de urgência. Furtar-se a esse dever pode ser interpretado como negligência, incompetência ou omissão de socorro. Nenhum grupo transplantador tem dificuldade de saber quais de seus pacientes estão em piores condições clínicas.


Obediência ao princípio de gravidade é dogma sagrado na medicina; o critério cronológico fere os direitos humanos
Aos que defendem o critério cronológico por causa da falta de infra-estrutura, fica a lembrança de que no país existem grupos com excelentes resultados, operando pacientes graves e idosos, com resultados semelhantes aos de centros internacionais.
No Rio Grande do Sul, o Ministério Público do Estado defende que o critério de alocação passe a ser por gravidade, diferentemente de todo o restante do país.
Há muitas maneiras de abordar o grave problema dos portadores de doenças hepáticas crônica e cirrose. Precisamos urgentemente criar um programa nacional, com campanhas de esclarecimentos, com "recall" da população de risco: pacientes que receberam transfusão de sangue antes de 1992, dependentes de drogas, usuários de seringas e agulhas não descartáveis e outros.
Há a necessidade de estender os programas de vacinação contra a hepatite B a toda a população e estender a vacinação contra as hepatites A e B ao menos aos portadores de doenças hepáticas crônicas e cirrose. Precisamos disponibilizar os testes sorológicos e virológicos, em todo território nacional, à população e aos portadores dos vírus B e C. É preciso ainda disponibilizar o Interferon de segunda geração, inicialmente, a 60% dos pacientes não respondedores ao tratamento convencional e aos portadores de cepas do vírus resistentes (genótipos 1, 4 e 5).
O transplante hepático representa apenas uma modalidade de tratamento aos portadores em fase terminal de doenças hepáticas crônicas e cirrose.
Como Oscar Rosé, 58, e outros 595 pacientes da lista única que faleceram sem direito a clemência, centenas e milhares de outros virão a falecer em um futuro próximo. O transplante hepático é a ultima esperança de vida aos pacientes terminais e, por esse motivo, a prioridade da alocação por gravidade deve ser obrigatória. Se a magnitude do problema dos portadores de doenças hepáticas crônicas e cirrose ultrapassa as possibilidades resolutivas do Ministério da Saúde, não é por meio do extermínio dos pacientes mais graves que se resolverá o impasse.


Hoel Sette Júnior, 59, hepatologista e doutor em gastroenterologia pela USP, com pós-doutorado na Universidade de Londres, é chefe do Grupo de Hepatologia do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e diretor-presidente da Pró-Fígado.


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