São Paulo, terça-feira, 03 de outubro de 2006

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O desafio de evitar erro humano na aviação

ANTONIO AUGUSTO MASSON


A evolução tecnológica não é perfeitamente seguida por nosso organismo. Daí decorre a possibilidade de erro operacional


O IMPACTO da trágica queda do Boeing 737-800 da Gol, na última sexta-feira -o maior acidente aeronáutico brasileiro em todos os tempos, em razão do número de vítimas potenciais: 155 a bordo-, nos obriga a, além de lamentar as mortes e ter solidariedade com as famílias das vítimas, refletir sobre alguns aspectos dos acidentes aéreos.
É bem verdade que a análise dos detalhes do acidente do vôo 1907 está lenta devido às condições de difícil acesso ao local dos destroços.
Não é menos verdade, porém, que é bem estabelecido pela literatura que a maioria (mais de 70%) dos incidentes e desastres aéreos são desencadeados pela falha operacional humana, que ocorre, via de regra, após uma seqüência de variados fatores sobrepostos que, somados, comprometem perigosamente o desempenho do piloto e dos tripulantes que dão suporte às operações de pilotagem.
A perfeita condução de uma aeronave moderna é calcada em finas e complexas interações de vários componentes: o piloto (fator humano); a estrutura física (fator máquina); o ambiente (fator ambiental, que inclui condições climáticas e contexto de cabine); e o suporte lógico (fator ligado a procedimentos e simbologia dos instrumentos). A parte mais suscetível é a estrutura humana, freqüentemente vítima do estresse físico e emocional, comum em nossos dias.
Vale lembrar que a evolução tecnológica constante não é perfeitamente acompanhada por nosso organismo, portador de reflexos e reações primitivas que são comumente desafiados pelas acelerações, vibrações, ruídos e estímulos visuais estranhos -e estes são inerentes à atividade aeronáutica.
Daí decorre a possibilidade de erro operacional, habitualmente facilitado pela fadiga e pelo estresse psicológico de variadas origens.
A medicina de aviação, ramo ocupacional específico, atua para minimizar aquelas deficiências por meio das práticas do treinamento fisiológico -situações em que os pilotos, em ambiente de laboratório, entram em contato com os fatores estressores e "aprendem" como proceder num possível caso real.
Um bom exemplo é o treinamento de visão noturna, no qual o piloto se habilita para o melhor uso dos seus recursos visuais após conhecer alguns recursos de adaptação visual. Podemos também ilustrar o treinamento com acelerações, em que o treinando, com os seus sinais vitais monitorados, entra em uma centrífuga humana e experimenta acelerações de até nove gravidades (treinamento indicado para pilotos militares de caça, recurso "didático" utilizado a cada seis meses pela Força Aérea dos EUA).
Um das manifestações mais comuns e ameaçadoras do estresse (preocupações familiares, financeiras etc.) é a chamada atenção canalizada, que se caracteriza por uma limitação a alarmes ou avisos, mesmo em situações de risco para o vôo.
O Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), órgão situado em Brasília, desempenha bem essa função educativa e formadora em segurança, ministrando cursos regulares na área. No entanto, creio que outras instituições correlatas deviam se engajar em uma verdadeira cruzada para aumentar a abrangência dos cursos de capacitação para pilotos e tripulantes, dentro de um esforço conjugado da sociedade brasileira para elevar o nível da segurança em nossos ares. A causa se justifica pelo indiscutível e irreparável valor das vidas humanas.
Com essa breve discussão, podemos perceber que o treinamento operacional e o conhecimento das formas de combater o estresse são fundamentais para a segurança do vôo. Muitas medidas e comportamentos preventivos dependem do próprio piloto, que deverá assimilar elevado grau de conscientização para as medidas de precaução.
Após refletirmos sobre os fatores preponderantes que geram os acidentes aeronáuticos, fica mais fácil depreender a importância e a premência do investimento em programas de educação continuada para habilitar e reciclar esses profissionais para o desempenho da nobre atividade aérea, iniciada há cem anos por Santos Dumont, com a excelência técnica inspirada no vôo pioneiro do 14 Bis.
Creio ser exatamente isso o que nós, brasileiros orgulhosos e passageiros em potencial, almejamos.

ANTONIO AUGUSTO MASSON , 52, médico, é especialista em fisiologia aeroespacial pela Escola de Medicina Aeroespacial de Brooks, Texas (EUA).


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