São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Apenas um detalhe

BORIS FAUSTO

O papel do futebol como fator de identificação se encontra em crise, no caso brasileiro, por força do processo de globalização

EM ENTREVISTA a esta Folha (30/9), o notável historiador inglês Eric Hobsbawm, que continua escrevendo livros aos 90 anos, fez referência a um tema de seu ensaio "Nations and Nationalism in the New Century" (nações e nacionalismo no novo século) tratando das relações entre a globalização e o futebol.
Na sua observação, "o futebol sintetiza muito bem a dialética entre identidade nacional, globalização e xenofobia dos dias de hoje". Isso tem a ver com o fato de que os grandes clubes da Europa viraram entidades transnacionais, mas o que faz o futebol popular continua sendo a identificação local com determinada equipe ou, no nível mais amplo, a identificação com a seleção nacional.
Se as relações entre globalização e futebol como espetáculo de massa têm sentido do ângulo do Brasil, da Argentina e de alguns países da África, essas relações são também análogas à era anterior ao fenômeno da globalização -a do imperialismo clássico, quando o mundo se dividia entre países fornecedores de matéria-prima e países industrializados.
Não escapa aos olhos de ninguém que, na esfera do futebol, o Brasil não é um país emergente, mas um fornecedor de matéria-prima, sangrando incessantemente em suas fontes de suprimento, para glória dos campeonatos europeus e tristeza das nossas peladas.
O papel do futebol como fator de identificação se encontra em crise, no caso brasileiro, por força do processo de globalização. De fato, se ele abriu uma grande oportunidade de ascensão social e de prestígio para muitos e muitos jogadores brasileiros, provocou, ao mesmo tempo, um crescente declínio no aludido papel de identificação nacional.
Lembremos, de passagem, que o futebol tem sido um elemento positivo dessa identificação, fanatismo nacionalista à parte. Bem melhor identificar-se nacionalmente por um espetáculo de massa, carregado de significações e que é, por acréscimo, um elo de comunicação instantâneo entre as pessoas do que por conquistas do passado, mitificação de heróis ou reivindicações territoriais.
Daí a importância de ressaltar a crise de identificação que resulta, sobretudo, do papel dominante desempenhado por uns poucos grandes clubes na cena do futebol mundial, a ponto de os nossos maiores jogadores, os que se tornaram astros, se empenharem com todas as forças nos jogos dos clubes que os pagam regiamente, enquanto participam dos jogos da seleção como quem cumpre uma tarefa burocrática, meio enfadonha, ressalvadas as exceções.
Mas, nesse mesmo domingo em que esta Folha publicou a entrevista com Hobsbawm, tivemos um exemplo de identificação nacional pela via do futebol como há anos não se via, embora o envolvimento popular tenha sido ainda limitado. Quase não precisaria dizer que estou me referindo à partida final do Campeonato Mundial de futebol feminino, em que a Alemanha se tornou campeã.
Obviamente, não tenho a pretensão de comentar as alternativas do jogo, analisadas nas páginas deste jornal por gente especializada da melhor qualidade. Quero ressaltar o aspecto de identificação nacional e de respeito social despertado pelas meninas brasileiras, resultante de uma dedicação sem limites e da qualidade individual, apesar das carências de uma organização precária -lembrando, aliás, as características do nosso futebol masculino de tempos passados.
Um documentário exibido no sábado por um dos canais Sportv expressou algo da história dessas moças, se concentrando numa melancólica Cristiane, incerta de seu destino, e numa uma vitoriosa Marta, nos limites estreitos da carreira do futebol feminino, mesmo na Europa.
Lá estão as imagens daquele Brasil profundo, da cidadezinha alagoana de Dois Riachos, onde Marta nasceu e de onde saiu para o Rio de Janeiro.
Quem viu os carros de boi, o rio seco, as estradas poeirentas, a mãe emotiva e resoluta no apoio à filha, os meninos magros sonhando em ser Marta se identificou de algum modo com aquele Brasil do sertão e com sua gente de Alagoas.
No domingo, as meninas da bola, de pele escura, franzinas, lutando contra adversárias bem organizadas, contra incompreensões e preconceitos, na realidade venceram ao nos proporcionar um sentimento de identificação, ausente há anos, mesmo que a contagem do jogo favorecesse a Alemanha.
Nesse caso, mas só nesse caso, como disse, se não me engano, o técnico Parreira em outras circunstâncias, os gols sofridos pelas meninas do Brasil foram apenas um detalhe.


BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

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