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TENDÊNCIAS/DEBATES
Apenas um detalhe
BORIS FAUSTO
O papel do futebol como fator de identificação se encontra em crise, no caso brasileiro, por força do processo de globalização
EM ENTREVISTA a esta Folha
(30/9), o notável historiador inglês Eric Hobsbawm, que continua escrevendo livros aos 90 anos,
fez referência a um tema de seu ensaio "Nations and Nationalism in the
New Century" (nações e nacionalismo no novo século) tratando das relações entre a globalização e o futebol.
Na sua observação, "o futebol sintetiza muito bem a dialética entre
identidade nacional, globalização e
xenofobia dos dias de hoje". Isso tem
a ver com o fato de que os grandes
clubes da Europa viraram entidades
transnacionais, mas o que faz o futebol popular continua sendo a identificação local com determinada equipe ou, no nível mais amplo, a identificação com a seleção nacional.
Se as relações entre globalização e
futebol como espetáculo de massa
têm sentido do ângulo do Brasil, da
Argentina e de alguns países da África, essas relações são também análogas à era anterior ao fenômeno da
globalização -a do imperialismo
clássico, quando o mundo se dividia
entre países fornecedores de matéria-prima e países industrializados.
Não escapa aos olhos de ninguém
que, na esfera do futebol, o Brasil não
é um país emergente, mas um fornecedor de matéria-prima, sangrando
incessantemente em suas fontes de
suprimento, para glória dos campeonatos europeus e tristeza das nossas
peladas.
O papel do futebol como fator de
identificação se encontra em crise, no
caso brasileiro, por força do processo
de globalização. De fato, se ele abriu
uma grande oportunidade de ascensão social e de prestígio para muitos e
muitos jogadores brasileiros, provocou, ao mesmo tempo, um crescente
declínio no aludido papel de identificação nacional.
Lembremos, de passagem, que o
futebol tem sido um elemento positivo dessa identificação, fanatismo nacionalista à parte. Bem melhor identificar-se nacionalmente por um espetáculo de massa, carregado de significações e que é, por acréscimo, um
elo de comunicação instantâneo entre as pessoas do que por conquistas
do passado, mitificação de heróis ou
reivindicações territoriais.
Daí a importância de ressaltar a crise de identificação que resulta, sobretudo, do papel dominante desempenhado por uns poucos grandes clubes
na cena do futebol mundial, a ponto
de os nossos maiores jogadores, os
que se tornaram astros, se empenharem com todas as forças nos jogos dos
clubes que os pagam regiamente, enquanto participam dos jogos da seleção como quem cumpre uma tarefa
burocrática, meio enfadonha, ressalvadas as exceções.
Mas, nesse mesmo domingo em
que esta Folha publicou a entrevista
com Hobsbawm, tivemos um exemplo de identificação nacional pela via
do futebol como há anos não se via,
embora o envolvimento popular tenha sido ainda limitado. Quase não
precisaria dizer que estou me referindo à partida final do Campeonato
Mundial de futebol feminino, em que
a Alemanha se tornou campeã.
Obviamente, não tenho a pretensão de comentar as alternativas do jogo, analisadas nas páginas deste jornal por gente especializada da melhor
qualidade. Quero ressaltar o aspecto
de identificação nacional e de respeito social despertado pelas meninas
brasileiras, resultante de uma dedicação sem limites e da qualidade individual, apesar das carências de uma organização precária -lembrando,
aliás, as características do nosso futebol masculino de tempos passados.
Um documentário exibido no sábado por um dos canais Sportv expressou algo da história dessas moças, se
concentrando numa melancólica
Cristiane, incerta de seu destino, e
numa uma vitoriosa Marta, nos limites estreitos da carreira do futebol feminino, mesmo na Europa.
Lá estão as imagens daquele Brasil
profundo, da cidadezinha alagoana
de Dois Riachos, onde Marta nasceu e
de onde saiu para o Rio de Janeiro.
Quem viu os carros de boi, o rio seco,
as estradas poeirentas, a mãe emotiva
e resoluta no apoio à filha, os meninos magros sonhando em ser Marta
se identificou de algum modo com
aquele Brasil do sertão e com sua
gente de Alagoas.
No domingo, as meninas da bola,
de pele escura, franzinas, lutando
contra adversárias bem organizadas,
contra incompreensões e preconceitos, na realidade venceram ao nos
proporcionar um sentimento de
identificação, ausente há anos, mesmo que a contagem do jogo favorecesse a Alemanha.
Nesse caso, mas só nesse caso, como disse, se não me engano, o técnico
Parreira em outras circunstâncias, os
gols sofridos pelas meninas do Brasil
foram apenas um detalhe.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional)
da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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