São Paulo, sexta-feira, 03 de dezembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A favor de mim mesmo

CARLOS HEITOR CONY

O ombudsman Marcelo Beraba telefonou-me semana passada comunicando que, estando meu nome na berlinda, faria o comentário que lhe cabia fazer sobre as indenizações. Obedecendo à regra básica do jornalismo, Beraba procurava ouvir o "outro lado", que era eu. Disse-lhe que nada teria a sugerir. Que fizesse a coluna com a independência e a competência que tanto admiramos nele.
Não deu outra. Considero perfeito o seu artigo do último domingo ("Ecos de 64", pág. A6), tanto do ponto de vista profissional como ético, embora desconfie de qualquer tipo de ética. Adoto para uso próprio a definição que Voltaire deu para ela: "Ética é aquilo que nós queremos que os outros não façam".


Não lutei por ideais. E não foi a luta que não lutei que me fez habilitar à indenização legal


Deixou claro que não houve nenhuma ilegalidade ou irregularidade no meu processo. Os que disso duvidam podem pedir acesso a quem de direito, que responderá pela violação da lei e dos critérios estabelecidos para todos os casos.
Beraba transcreveu algumas mensagens recebidas dos leitores que estão pedindo minha cabeça e criticam a Folha por não a colocarem numa bandeja. Ele não podia publicar todas, precisaria de uma edição substanciosa, dessas que são feitas quando o Brasil ganha a Copa do Mundo.
Também recebi e continuo recebendo violentos e-mails, que minhas secretárias arquivam numa pasta que está ficando obesa, com notas e comentários dos colegas da mídia. Movidos pela mesma ética definida por Voltaire, apontam-me à condenação pública.
É irrelevante o único reparo que faço ao artigo do ombudsman. Trata-se de um equívoco generalizado, que aliás me deixa bem, equívoco no qual até o Paulo Francis embarcou, considerando-me o herói solitário daqueles dias. E também Pablo Neruda, em declaração que consta do livro de Jurema de Finamour, secretária do poeta. Neruda considerou-me, naquela ocasião, o único homem do Brasil que tinha sua anatomia completa. ("Pablo e Dom Pablo"; Nórdica, 1975).
Baseado nas mensagens dos leitores, Marcelo Beraba escreve: "Muitos acham que não deveria haver indenização para os que lutaram contra o regime militar e sofreram as conseqüências dessa luta. Argumentam que era uma luta por ideais e que previa riscos". O equívoco está nesses "ideais", defendidos pelos demais anistiados, não por mim. Meus artigos nunca lutaram por nenhum ideal, mas sempre em causa própria. Deixei isso claro nas crônicas de 1964, reeditadas agora pela editora Objetiva, por ocasião dos 40 anos do golpe.
Muita gente entendeu a minha "luta" como defesa dos fracos e oprimidos. Naquela época escrevi: "Para continuar a ser o mesmo, para manter íntegra a minha autenticidade interior foi que me vesti na pele suada de um Dom Quixote subdesenvolvido e saí por aí dando patadas (...) Acima de qualquer compromisso para com a pátria ou para com o povo, tenho um compromisso para comigo mesmo. E é em nome desse compromisso que continuarei sendo o que sou, independentemente do aplauso, da vaia, da glória ou da miséria" (1º/9/64).
Contrariei Ênio Silveira, meu editor naquela época, autor do prefácio em suas primeiras edições: "Paladino sem filiação política, cruzado sem cruz, Cony erguia sua voz e brandia sua pena, qual novo Cid, em defesa da dignidade essencial do ser humano". Ênio achou que eu seria um Cid, que é heróico. Preferi me considerar um Quixote, que é ridículo. Não tenho culpa pelo equívoco daqueles que pensavam estar sendo defendidos por mim. Daí a estranheza de Otto Maria Carpeaux, a quem o livro é dedicado: "Sem dar razão aos vencidos, Cony defende-os dos vencedores". O vencido era eu.
Constrangido, relembro tudo isso para esclarecer a única restrição que faço ao artigo do ombudsman: não lutei por ideais. E não foi a luta que não lutei que me fez habilitar à indenização legal.
Não foram os empregos que perdi nem o fechamento, para mim, do mercado de trabalho durante anos. Eu sabia que colocava o pescoço na guilhotina do regime militar. Bem ou mal, dei a volta por cima. O que me obrigou a exigir reparação do Estado ou da "viúva" -para mim dá no mesmo- foram os momentos que passamos, minha família e eu, principalmente minhas filhas, ainda crianças, que nada tinham a ver com a atitude do pai. O meu processo, analisado e julgado na Primeira Câmara, faz referências a isso.
Quanto ao valor da reparação, ela não foi estabelecida por mim nem por nenhum dos anistiados. Foi a lei que prevalece para todos os casos. Seria ótimo se todas as indenizações tivessem o mesmo valor. Mas a Comissão de Anistia não tem competência nem está em suas atribuições nivelar as classes sociais. Seria ótimo, também, se o 13º salário fosse igual para todos os trabalhadores e funcionários. Nada mais justo e ético do que um general ou delegado ganharem a mesma gratificação natalina de um operário. Fica a sugestão, ofereço-a de graça. Com indenização ou sem ela, considero-me credor da viúva que viveu amasiada 21 anos com o regime anterior, tornando-se meeira, ou seja, herdeira e sucessora dos débitos e créditos contraídos durante a meação com o regime militar.
Quanto à ética atualmente tão invocada, relembro a definição de Voltaire, que foi considerado imoral por violar os princípios éticos no processo contra Calas. Outro imoral foi Zola, por seus livros e por ter denunciado um erro judiciário. Defendendo o capitão inocente do crime que não cometera, Zola resguardava sua própria dignidade de homem e intelectual, agredida pelo Estado. Recebeu ordem de prisão e foi obrigado a se exilar em Londres.
Os dois imorais estão hoje no Panteão. Os moralistas, os éticos, no cemitério.

Carlos Heitor Cony é jornalista e escritor.


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