São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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O direito à paz

PAULO BONAVIDES


A lição destas reflexões se resume em fazer da paz axioma da democracia. O direito à paz como supremo direito da humanidade


O DIREITO à paz é o direito natural dos povos. Direito que esteve em estado de natureza no contratualismo social de Rousseau e que ficou implícito como um dogma na paz perpétua de Kant.
Direito à paz, sim. Mas paz em sua dimensão perene, à sombra do modelo daquele filósofo. Paz em seu caráter global, em sua feição agregativa de solidariedade, em seu plano harmonizador de todas as etnias, de todas as culturas, de todos os sistemas, de todas as crenças e que a fé e a dignidade do homem propugnam, reivindicam e sancionam.
Paz, portanto, em seu sentido mais profundo, perpassado de valores domiciliados na alma da humanidade. Valores providos de inviolável força legitimadora, única capaz de construir a sociedade da justiça, que é fim e regra para o estabelecimento da ordem, da liberdade e do bem comum na convivência universal.
A essa idéia de concórdia adere uma ética que tem a probabilidade de governar o futuro, nortear o comportamento da classe dirigente, legitimar-lhe os atos e as relações de poder.
Quem conturbar essa paz, quem a violentar, quem a negar, cometerá, à luz desse entendimento, crime contra a sociedade humana. Execrado das presentes e das futuras gerações, o Estado que delinqüir ou fizer a paz soçobrar como direito há por certo de responder ante o tribunal das nações; primeiro no juízo coevo, a seguir, no juízo do porvir, perante a história.
Devemos assinalar que a defesa da paz se tornou princípio constitucional, insculpido no artigo 4º, inciso VI, da nossa Constituição. Desde 1988, avulta entre os princípios que o legislador constituinte estatuiu para reger o país no âmbito de suas relações internacionais. E, como todo princípio na Constituição, tem ele a mesma força, a mesma virtude, a mesma expressão normativa dos direitos fundamentais. Só falta universalizá-lo, alçá-lo a cânone de todas as Constituições.
Vamos requerer, pois, o direito à paz como se requerem a igualdade, a moralidade administrativa, a ética na relação política, a democracia no exercício do poder.
No mundo globalizado da unipolaridade, das economias desnacionalizadas e das soberanias relativizadas e desrespeitadas, ou ficamos com a força do direito ou com o direito da força. Não há mais alternativa. A primeira nos liberta, a segunda nos escraviza; uma é a liberdade, a outra, o cárcere; aquela é Rui Barbosa em Haia, esta é Bush em Washington e Guantánamo; ali se advogam a Constituição e a soberania, aqui se canonizam a força e o arbítrio, a maldade e a capitulação.
A ética social da contemporaneidade cultiva a pedagogia da paz. Impulsionada do mais alto sentimento de humanismo, ela manda abençoar os pacificadores.
Elevou-se, assim, a paz ao grau de direito fundamental da quinta geração ou dimensão (as gerações antecedentes compreendem direitos individuais, direito sociais, direito ao desenvolvimento, direito à democracia). Fizemo-la, aliás, objeto de recente conferência em Curitiba, por ocasião do 9º Congresso Ibero-Americano de Direito Constitucional, que teve a presença de 2.000 pessoas de 20 Estados da Federação e de outros países.
A paz logrou ali a dignidade teórica de um direito e de um princípio constitucional, constando da carta que o plenário daquela assembléia de juristas da América Latina e da Europa aprovou por aclamação.
Em suma: dantes, a paz tida por direito fundamental nas regiões teóricas; doravante, porém, a paz erguida à categoria de direito positivo. Ontem, um conceito filosófico, hoje, um conceito jurídico. E tanto mais jurídico quanto maior a força principiológica de sua acolhida nas Constituições.
Há, em verdade, uma espécie de poder constituinte moral que, ao prescrever-lhe o reconhecimento normativo, cria um novo direito e busca, assim, garantir a sobrevivência do homem na idade dos artefatos nucleares e da explosão tecnológica.
A lição conclusiva destas reflexões se resume também em fazer da paz axioma da democracia. Fundamentando, enfim, a nova figura introduzida no rol dos direitos humanos, inspirada de dois filósofos da liberdade, asseveramos que a guerra é um crime e a paz é um direito.
Sem a memória e a percepção dessa verdade gravadas na consciência dos povos e na razão dos governantes, nunca concretizaremos a mais solene, a mais importante, a mais inderrogável cláusula do contrato social: o direito à paz como supremo direito da humanidade.

PAULO BONAVIDES , 81, doutor "honoris causa" da Universidade de Lisboa (Portugal), é professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e diretor da "Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais". É autor, entre outras obras, de "História Constitucional do Brasil".


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