São Paulo, quinta-feira, 04 de janeiro de 2007

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Tempo e poder

AS FIGURAS do tempo efêmero e fatídico são a antítese de seu controle político, que visa eternizar-se. O moderno domínio dessa esfera pelo homem implica concebê-la como interiorizada e produtiva. Tal apropriação só é possível porque se desentranha, entre prática humana e temporalidade, uma exata medida comum, mediante a qual é possível nelas introduzir o cálculo e conjugá-las. Dividem-se as horas, dividem-se os afazeres, articulam-se as duas séries.
Nessas operações, importa notar que a segmentação do fluxo temporal determina-se em atos do pensamento. O tempo concebido como um "continuum" potencialmente divisível ao infinito, em instantes escandidos mediante operações inteligíveis, ajusta-se ao ideário expresso no Della Famiglia, de J.B.
Alberti, artista e teórico seminal da cultura moderna, leitor de Aristóteles como os personagens de seu diálogo. Aristóteles, justamente, soluciona a dificuldade da divisão efetiva do tempo, que o anularia, passando para sua potencialidade, convertendo-a em operação noética. (V. Goldschmidt).
Igual estrutura do tempo subjaz às tentativas contemporâneas de planejar a vida social e econômica.
O próprio homem é concebido, no capitalismo, como tempo: não é o trabalho, por si, que produz valor, mas o tempo de trabalho (fixado no curso histórico), cuja duração completa (por ex., um dia) é divisível em necessário (à subsistência do trabalhador) e excedente (que acresce o capital). Todo o movimento do sistema se determina no tempo divisível em seus circuitos: quanto maior a duração do capital no processo produtivo, fonte do valor, maior sua ampliação; quanto mais os circuitos da circulação (que se estende para rendas e juros) demoram a fechar-se, menor a expansão possível. Se assim é, a promessa de crescimento, num sistema que empenha o futuro, preso ao capital financeiro inflado e anômalo, prisioneiro da liquidez internacional, cujos ganhos inibem ou expulsam os investimentos produtivos nacionais, não passam de má retórica, propaganda.
Fala-se em "acelerar o tempo". Qual tempo? O da produção? Como seria isso possível se "o mercado" é o fetiche que se cultua -árbitro que pune ou recompensa, potência autônoma que "honra" seus atos- no delirante discurso sobre o dinheiro sem mediação com os processos reais, sem nexos aparentes com o movimento conjunto do capital? Mas sua remuneração não brota do nada, sai da riqueza produzida, oferecida à devoração, sem retorno para renovar-se. Nenhum pensamento vive de tagarelice: a mudança socioeconômica pressupõe uma base reflexiva criando saber tecnológico, independência econômica, liberdade política e autonomia ética em nosso "povo soberano".


sylvia.franco@uol.com.br

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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