São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2009

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"E la nave va"

Depois de campanha baseada em obras e promessas, prefeitos improvisam discurso de austeridade na posse

MUDAM os tempos. A imagem que fica das campanhas eleitorais de 2008, para quem ainda se lembra, pode resumir-se numa única mensagem: "Mais do mesmo será feito". Pouca diferença havia a notar no discurso dos candidatos: na maior parte das vezes, a disputa se concentrou em torno do número de vias asfaltadas, de postos de saúde, escolas e creches construídas ou a construir.
Nada há de espantoso em tantas menções a obras realizadas ou prometidas. O problema é que, com isso, dissolve-se numa espécie de "produtivismo administrativo" o debate real sobre as opções políticas a tomar, e estas, cedo ou tarde, revelam-se menos consensuais do que fazia prever o marketing eleitoral.
Os prefeitos que assumem em 2009 já se distanciam, ao que tudo indica, do roteiro traçado na campanha de alguns meses atrás.
Predomina, já na posse dos governantes das principais cidades brasileiras, o discurso da contenção de despesas e das medidas simbólicas de austeridade.
Os gastos em todas as áreas serão congelados em São Paulo, assegura o prefeito Kassab, com a exceção (nada desprezível) dos projetos em saúde, transporte e educação. Cabe indagar, entretanto, como se comportarão diante dessa anunciada austeridade as lideranças políticas que se beneficiaram, em São Paulo, do amplo loteamento das secretarias municipais -cujo número, na contracorrente das demais capitais, cresceu de 21 para 27 nos últimos meses.
Kassab afirmou, em seu discurso de posse, que será preciso "navegar com cautela" nas águas da crise; mas a festa promete ser animada nos muitos camarotes reservados do seu transatlântico.
Seria de todo modo criticado, e com razão, o administrador público que não refizesse seus planos administrativos diante dos generalizados indícios de uma queda de arrecadação ao longo dos próximos meses.
O precedente dos discursos eleitorais não confere, todavia, maior credibilidade aos pronunciamentos de agora. Não se falava em controle de gastos, muito menos em mudanças na estrutura tributária, durante a campanha de 2008.
A euforia de então se revela conjuntural, os eleitos se adaptam à nova realidade, promessas se engavetam, e por mais incerto que seja o futuro, ao menos um ensinamento pode ser delineado de toda a comédia melancólica.
É que, no processo eleitoral brasileiro, o puro marketing substituiu a discussão política; com isso, na hora das decisões que realmente contam, tudo se reconfigura segundo critérios sem transparência e discursos rapidamente alinhavados para acompanhar a nova ocasião.
Em vez de "mais do mesmo", passa-se a falar em "menos do mesmo". Na frase de Kassab, é hora de "navegar com cautela". Na crise ou na bonança, entretanto, a mentalidade essencial de improvisação não muda, e cabe defini-la com outra frase curta, tirada do universo fantasioso de Fellini: "E la nave va".


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