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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
O salário é onde pega
A luta -justa, fecunda e inevitável- pela recomposição e pelo
aumento dos salários será o fato decisivo dos próximos meses. A maneira
pela qual o governo do PT reagir a essa
luta revelará a natureza desse governo
e determinará seu destino.
O governo já fez opção que ameaça
resultar na violação do compromisso
essencial em nome do qual se elegeu: o
de assegurar que a retomada de crescimento se apóie na democratização das
oportunidades. Optou por continuar
a política econômica do governo que
denunciara e por escolher como carro-chefe de sua política social um projeto -o Fome Zero- que só pode ser
qualificado de retrógrado. Nem os críticos mais ferinos do PT teriam suposto que sua primeira experiência de governo nacional seria marcada pela
combinação da primazia atribuída à
confiança financeira com a imitação
de um programa social secundário
dos Estados Unidos da década de
1970.
Falta qualquer indício de seriedade,
clareza e competência na execução da
tarefa básica: a democratização do
Brasil e de sua economia. Se quiserem
modelo estrangeiro, o exemplo é Roosevelt, que centrou seus esforços no
uso audacioso e experimental do poder público para ampliar oportunidades de trabalhar, produzir e inovar.
Programa como o dos "food stamps"
foi, na concepção e na prática, apenas
um reforço menor, entre muitos, dessa diretriz.
Alegam os novos governantes que
precisam trilhar esse caminho, de
pseudo-ortodoxia econômica e de caridade paternalista, para evitar o colapso das finanças públicas e para
granjear o respeito internacional. Estão mentindo a si mesmos e acorrentando as próprias mãos. Ao contrário
do que se publica na imprensa brasileira, as declarações internacionais do
presidente foram vistas como novo
ponto baixo no ritual dos chavões irrelevantes. A dinâmica da dívida continua a degenerar ferozmente. E a popularidade do governo impressiona
menos quando se lembra que perde
para a popularidade inicial de Fernando Collor, que também viria a se atrapalhar com a diferença entre ser e parecer.
A realidade, entretanto, chegará na
forma da luta salarial. O preço mais
importante em nossa economia ainda
relativamente fechada não é o câmbio;
é o salário. O aviltamento salarial foi a
verdadeira âncora do Plano Real; sua
importância aumentou ainda mais
depois que o regime do câmbio fixo
ruiu. Entre países em nível semelhante
de desenvolvimento, o Brasil, depois
de décadas de crescimento medíocre e
antipopular, ocupa um dos piores lugares em critérios que medem a participação dos trabalhadores na renda
nacional. Sem transferência direta de
renda aos trabalhadores mais pobres e
sem democratização iniciada nas escalas superiores do assalariado, por
meio da efetivação do princípio constitucional de participação dos trabalhadores nos lucros nas empresas, não
construiremos bases para desenvolvimento sólido e democratizante.
A tarefa agora é organizar as reivindicações salariais, para que abranjam
desde o salário mínimo até os salários
mais altos. O resultado será forçar o
governo a se definir e resgatá-lo do
pântano de ilusões sedutoras em que
precocemente afunda. Ou o governo
muda de rumo, ou se coloca, de vez,
ao lado dos patrões contra os trabalhadores. Nesse caso, a perplexidade
do país se transformará em indignação quando se souber que os mesmos
que conspiraram para reprimir os salários multiplicaram seus próprios salários com participações em conselhos de empresas públicas. Desorientados e desmoralizados, obrigarão o
Brasil a superar o que terá sido um
triste e trágico desvio.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna. www.law.harvard.edu/unger
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