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São Paulo, terça-feira, 04 de fevereiro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O salário é onde pega

A luta -justa, fecunda e inevitável- pela recomposição e pelo aumento dos salários será o fato decisivo dos próximos meses. A maneira pela qual o governo do PT reagir a essa luta revelará a natureza desse governo e determinará seu destino.
O governo já fez opção que ameaça resultar na violação do compromisso essencial em nome do qual se elegeu: o de assegurar que a retomada de crescimento se apóie na democratização das oportunidades. Optou por continuar a política econômica do governo que denunciara e por escolher como carro-chefe de sua política social um projeto -o Fome Zero- que só pode ser qualificado de retrógrado. Nem os críticos mais ferinos do PT teriam suposto que sua primeira experiência de governo nacional seria marcada pela combinação da primazia atribuída à confiança financeira com a imitação de um programa social secundário dos Estados Unidos da década de 1970.
Falta qualquer indício de seriedade, clareza e competência na execução da tarefa básica: a democratização do Brasil e de sua economia. Se quiserem modelo estrangeiro, o exemplo é Roosevelt, que centrou seus esforços no uso audacioso e experimental do poder público para ampliar oportunidades de trabalhar, produzir e inovar. Programa como o dos "food stamps" foi, na concepção e na prática, apenas um reforço menor, entre muitos, dessa diretriz.
Alegam os novos governantes que precisam trilhar esse caminho, de pseudo-ortodoxia econômica e de caridade paternalista, para evitar o colapso das finanças públicas e para granjear o respeito internacional. Estão mentindo a si mesmos e acorrentando as próprias mãos. Ao contrário do que se publica na imprensa brasileira, as declarações internacionais do presidente foram vistas como novo ponto baixo no ritual dos chavões irrelevantes. A dinâmica da dívida continua a degenerar ferozmente. E a popularidade do governo impressiona menos quando se lembra que perde para a popularidade inicial de Fernando Collor, que também viria a se atrapalhar com a diferença entre ser e parecer.
A realidade, entretanto, chegará na forma da luta salarial. O preço mais importante em nossa economia ainda relativamente fechada não é o câmbio; é o salário. O aviltamento salarial foi a verdadeira âncora do Plano Real; sua importância aumentou ainda mais depois que o regime do câmbio fixo ruiu. Entre países em nível semelhante de desenvolvimento, o Brasil, depois de décadas de crescimento medíocre e antipopular, ocupa um dos piores lugares em critérios que medem a participação dos trabalhadores na renda nacional. Sem transferência direta de renda aos trabalhadores mais pobres e sem democratização iniciada nas escalas superiores do assalariado, por meio da efetivação do princípio constitucional de participação dos trabalhadores nos lucros nas empresas, não construiremos bases para desenvolvimento sólido e democratizante.
A tarefa agora é organizar as reivindicações salariais, para que abranjam desde o salário mínimo até os salários mais altos. O resultado será forçar o governo a se definir e resgatá-lo do pântano de ilusões sedutoras em que precocemente afunda. Ou o governo muda de rumo, ou se coloca, de vez, ao lado dos patrões contra os trabalhadores. Nesse caso, a perplexidade do país se transformará em indignação quando se souber que os mesmos que conspiraram para reprimir os salários multiplicaram seus próprios salários com participações em conselhos de empresas públicas. Desorientados e desmoralizados, obrigarão o Brasil a superar o que terá sido um triste e trágico desvio.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna. www.law.harvard.edu/unger


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