São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Façamos as pazes com a Terra

KOÏCHIRO MATSUURA


O chamado que nos é feito para pormos fim à guerra contra a natureza é por uma solidariedade sem igual com as gerações futuras


É CLARO que esta não é a primeira crise ecológica que a humanidade atravessa, mas não há dúvida de que é a primeira crise de âmbito tão amplo -de fato, tem a amplitude do mundo inteiro. O que estamos fazendo para salvaguardar o futuro da Terra e de sua biosfera? Quais são os desafios a serem enfrentados? Que soluções podemos propor?
Essas foram as questões discutidas na última sessão de nossos Diálogos do Século 21, com contribuições de cerca de 15 especialistas renomados. Em primeiríssimo lugar estão as mudanças climáticas e o aquecimento global: até o fim do século, o planeta pode ter esquentado entre 1,5C e 5,8C. Tal aquecimento climático ameaça muitas partes do mundo e poderá provocar muitas catástrofes.
Em segundo lugar vem o processo de desertificação, que já afeta um terço da terra firme do mundo. Ao final do século 20, quase 1 bilhão de pessoas em 110 países estavam ameaçadas pela expansão dos desertos. Esse número pode dobrar até 2050.
O desmatamento segue, apesar de as florestas primárias e tropicais abrigarem a maior parte da biodiversidade do mundo e de sabermos que elas ajudam a enfrentar mudanças climáticas e retardar a erosão dos solos.
Toda nossa biosfera é ameaçada pela poluição. O Banco Mundial estima que, na Ásia, ocorram 1,56 milhão de mortes/ano por causa da poluição. Até 2025, 2 bilhões de pessoas enfrentarão a falta de água. É muito provável que sejam 3 bilhões em 2050.
Por fim, está ameaçada a biodiversidade: as espécies são extintas num ritmo cem vezes superior ao natural médio. Até 2100, é possível que 50% das espécies já estejam extintas.
Essa situação acarreta riscos sérios de guerra e outros conflitos, exigindo uma resposta global. O desenvolvimento sustentável diz respeito a todos nós. É condição necessária a qualquer combate efetivo à pobreza -entre outras razões, porque são os mais pobres que sofrerão as piores conseqüências das secas e de outros desastres naturais que estão por vir.
Se não tomarmos medidas imediatas para combater o aquecimento global, poderemos prever a perda de entre 5% e 20% do PIB mundial. Quem diz que desenvolvimento sustentável custa caro demais? É o "desenvolvimento normal" que pode nos destruir! Javier Pérez de Cuéllar abriu nossos diálogos com um aviso inequívoco: "Como podemos saber, mas, mesmo assim, sermos incapazes de -ou não desejarmos- agir?".
Não é mais possível argumentar que "sustentabilidade" e "desenvolvimento" são metas conflitantes. Tampouco que lutar contra a pobreza é incompatível com a preservação dos ecossistemas. Precisamos lutar em todas as frentes ao mesmo tempo.
A idéia, claro, não é frear o crescimento por completo, mas, como disse Mostafa Tolba, promover a mudança o mais rápido possível para formas de riqueza menos materiais, reduzindo o consumo de matérias-primas.
É preciso haver uma consciência muito maior do potencial devastador do aquecimento global. Disso precisa resultar o cumprimento das medidas previstas no Protocolo de Kyoto.
Seria útil, também, promover o direito à água potável limpa, deitando fundamentos para a governança ética da água. A Unesco está engajada na promoção de políticas hídricas sustentáveis, fomentando a difusão de informação nessa área e incentivando a proteção global da biodiversidade.
Como parte da reforma atual dos sistemas das Nações Unidas, foi lançado um debate amplo sobre a governança do meio ambiente mundial e sobre a necessidade de uma melhor coordenação dos esforços de todos.
Estou convencido de que as atividades da ONU são demasiado fragmentadas, mas precisamos ter a certeza de construirmos a partir dos mecanismos que já existem e funcionam bem.
O chamado que nos é feito hoje para pormos fim à guerra contra a natureza é por uma solidariedade sem precedentes com as gerações futuras. Será que, para chegar a isso, a humanidade precisará selar um novo pacto, um "contrato natural" de co-desenvolvimento com o planeta, assinando um armistício com a natureza?
Precisamos da sabedoria necessária para defender uma ética para o futuro, pois, se quisermos fazer as pazes com a Terra, essa ética terá que prevalecer. Este planeta é o nosso reflexo: se ele está ferido, nós estamos feridos; se está mutilado, a humanidade também está. Para mudar de direção, precisamos criar sociedades baseadas no conhecimento que sejam capazes de reunir o combate à pobreza com os investimentos em educação, pesquisa e inovação. Ao fazê-lo, estaremos deitando os alicerces de uma verdadeira ética da responsabilidade.

KOÏCHIRO MATSUURA , 69, economista e diplomata japonês, é o diretor-geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Tradução de Clara Allain .


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