São Paulo, segunda-feira, 04 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Esporte e desenvolvimento humano

VINÍCIUS TERRA


O esporte é um fenômeno que espelha o desenvolvimento econômico muito mais que o desenvolvimento humano


SEIS MESES já se passaram dos acalorados Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, cujos gastos com segurança consumiram 63% da verba do Fundo Nacional de Segurança Pública do governo federal, R$ 418 milhões.
Daqui a seis meses, estima-se que 4 bilhões de pessoas (dois terços da população mundial) acompanharão a abertura da maior competição esportiva do mundo, as Olimpíadas. Na última, em Atenas, o orçamento com a segurança do evento de duas semanas ficou na casa do 1,2 bilhão de euros, valor 12 vezes maior que o orçamento atual do nosso Ministério do Esporte.
Diante desses números colossais e dos progressivos investimentos no mundo do espetáculo, fica a pergunta: qual o legado dos eventos esportivos para o desenvolvimento humano?
De fato, essa pergunta só pode ser feita num período como este, longe da euforia, pois é nos intervalos que encontramos os sentidos mais profundos dos eventos, em meio aos seus desejos e a sua história.
As razões da existência dos Jogos deslocam nossas atenções do evento em si, já que a origem etimológica da palavra "olympiada" a define como "o intervalo de quatro anos entre dois Jogos Olímpicos".
Deveríamos buscar na "olympiada", nesse longo intervalo de tempo, todo o manancial de sentidos dos Jogos, que nos remetem às heranças rurais e profanas dos povos helênicos e nos lembram que as colheitas são períodos terminantes de um largo tempo de preparação dedicado à formação que plantamos. Os Jogos, pois, seriam uma celebração desse tempo de cultivo, desse tempo de cultura.
Poderíamos assim dizer que a "olympiada" é o tempo de formação de uma cultura que dá sentido aos Jogos -a cultura esportiva.
Para o barão Pierre de Coubertin, o renascimento dos Jogos modernos está vinculado à difusão do esporte moderno, que nasceu em meados do século 19 nas escolas inglesas e tinha fins educativos, morais e associativos: naquele amanhecer da globalização, a cultura esportiva fertilizou a formação e a delimitação de novas redes sociais, aproximando pessoas e provocando conexões, atuando na mesma esteira que as ferrovias, o telégrafo, as feiras universais e os congressos científicos e literários: "As pessoas se misturaram, conheceram-se melhor (...) e a humanidade passou a viver uma nova existência", dizia Coubertin.
O fomento, a diversificação e a democratização dessa cultura esportiva, porém, não têm relações imediatas com a conquista de resultados em Olimpíadas. Tal raciocínio é tão fácil quanto equivocado, pois vincula-se à idéia de certo darwinismo esportivo, no qual a quantidade gera a qualidade, um paradigma econômico comum nos países em desenvolvimento.
A democratização da cultura esportiva comunitária, por outro lado, tem vínculos com o Índice de Desenvolvimento Humano: Noruega, Austrália, Canadá, Irlanda e Suécia, que encabeçam o IDH, têm políticas públicas atentas a esses valores de qualidade de vida vinculados ao esporte.
Desde a profissionalização do esporte e sua vinculação a um estilo de vida, a cultura da prática esportiva foi se atrofiando na mesma proporção em que o consumo dos espetáculos foi crescendo: "ser esportivo" tornou-se um simulacro do capital.
É claro que os países medalhistas do consumo esportivo são os mesmos que encabeçam a economia mundial e, por conseqüência, os mesmos que acumulam as melhores posições no ranking de medalhas das Olimpíadas.
Tomemos como parâmetros os países integrantes do G8, qual sejam, as sete maiores potências econômicas do planeta -Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá- mais a Rússia: com exceção do Canadá, todos eles colocaram-se nas dez primeiras posições do ranking de medalhas na última Olimpíada de Atenas. Ou seja, dentro do espírito capitalista, as Olimpíadas deixam de ser um intervalo para a formação da cultura da prática esportiva para ser o intervalo da formação do consumidor de espetáculos. Isto é, o esporte é um fenômeno que espelha o desenvolvimento econômico muito mais do que o desenvolvimento humano.
Não é à toa que a China, o grande tigre do Oriente, dotada de índices alarmantes de degradação ambiental, seguridade social e saúde, será a sede da Olimpíada de 2008. E, quem sabe, a maior medalhista desse mundo econômico-esportivo no século 21. Esperemos este intervalo, olimpicamente!


VINÍCIUS TERRA , 41, doutor em educação, é pesquisador e professor de História do Esporte na Faculdade de Educação Física da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e assistente da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc São Paulo.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Fabio Feldman e Roberto Smeraldi: Combate ou incentivo ao desmatamento?

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.