UOL




São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Curriculite

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK


Não é pequena a quantidade de docentes que jamais lecionam em programas de graduação. Isso é inaceitável
É uma enfermidade vigente pelo menos do âmbito da Faculdade de Medicina da USP e, provavelmente, também em outras instituições. Trata-se de algo que acomete docentes encarregados de estipular currículos pertinentes ao curso de graduação, sobretudo quando passam a fazer parte de comissão ou grupo que recebem a incumbência de desempenhar tal missão.
Logo que começam a agir, criticam a programação anterior -às vezes adotada recentemente- e estipulam novo plano, comumente sem analisar com sensatez o que vinha ocorrendo. Nem sempre propõem medidas discretas, pois, em geral, optam por alterações radicais, motivadoras de adaptações administrativas, de preocupações ou confusões entre os alunos e de ajustes no âmbito dos docentes. Poderia ser "curriculose", mas preferimos "curriculite", para incluir conotação infecciosa com caráter de contagiosidade, porque afigura-se frequente o uso de conduta desse tipo por vários profissionais.
Julgamos, porém, que há cura. Bastará impor, generalizadamente, compostura aplicável em todas as faculdades de medicina. As bases dela encontram-se a seguir expostas.
Fundamental é diplomar médicos conforme objetivo bem definido e respeitador do interesse do país no contexto da saúde pública. Improvisação, aleatoriedade e indefinição configuram impropriedades. Sem dúvida, as escolas de medicina devem oferecer bom preparo para que, ao término do curso, exista condição de prestar atendimento primário, de bom nível, a crianças e adultos. Essa atenção diz respeito a serviços essenciais atribuíveis à imensa maioria da população, como convém a um indispensável sistema assistencial.
Essa regra coaduna-se perfeitamente com o elogiável destaque que hoje, construtivamente, dá-se aos programas de saúde da família, em boa hora estimulados e ampliados. Eles mudarão o panorama atual, no qual distorções, pouca integração e mau conceito de prioridades ainda prevalecem.
Três metas requerem cumprimento por parte dos que ensinam em faculdades de medicina: formação de médicos, estando previstos meios para aprimoramento e atualização; busca de novos conhecimentos pela investigação científica; extensão de serviços à comunidade.
Quanto ao segundo item, não é cabível que as investigações tenham caráter puramente básico e impõe-se que configurem ações aplicadas. Docentes exclusivamente pesquisadores, que não lecionam no curso de graduação, apesar de muito úteis e respeitáveis, ficam melhor situados em órgãos específicos, especializados. A propósito do terceiro aspecto, basta lembrar que médicos, pela natureza do que fazem, são imbatíveis no acolhimento dessa atribuição.
Não é pequena a quantidade de docentes que jamais lecionam em programas de graduação. Isso é inaceitável e constitui um dos motivos pelos quais cursos têm má qualidade ou ganham críticas. Em recente eleição para o cargo de diretor da Faculdade de Medicina da USP, um dos candidatos disse desejar a nomeação de mais de 270 docentes para trabalhar no nível de formação em apreço e, logicamente, exagerou, mas traduziu a correta deficiência que lembrei. Afinal, é usual que residentes e alunos de pós-graduação substituam indevidamente os naturais responsáveis.
Faculdades de Medicina deverão, como desiderato essencial, diplomar profissionais competentes, de acordo com obediência a currículo apropriado para necessidades da nação, valendo então a recomendação antes destacada. Só terão o direito de acoplar outras finalidades se contarem com estruturas eficientes. Assim, é inadequado acolher pós-graduação "stricto sensu" sem poder cumprir o motivo justo para a existência dela. Algumas escolas, além disso, com liberalidade aceitam números de pós-graduandos exagerados, desguarnecendo os cursos de graduação.
Especialização depende de vocação e de tendência pessoal. No entanto não é admissível que fique procurada como regra. Enveredar pelo estilo de médico generalista significa bom caminho, desde que se torne viável labutar com respaldo em satisfatório salário, atualização permanente e apoio irrestrito em hospitais de nível secundário, aptos a guarnecer a atenção primária.
No conjunto dessas considerações incluo menção a dois equívocos corrigíveis: residência médica é tática para diferenciação em serviço, e jamais providência usada para recompor o mal ensinado na graduação; no processo seletivo para admissão em equipe de saúde da família é absurda a exigência de cumprimento prévio de residência.
Urge prevenir a curriculite. Ela é componente marcante dos obstáculos que impedem os cursos de graduação de contribuírem, sem desvios, para o preparo dos médicos de fato úteis ao Brasil.
Vicente Amato Neto, 75, médico infectologista, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. Jacyr Pasternak, 62, médico infectologista, é doutor em medicina pela Unicamp.

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Gilberto Dupas: Riscos sistêmicos da guerra do Iraque

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.