São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Um mundo mais inseguro

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA


Não existe nenhuma guerra de civilizações. Mas existe uma dificuldade essencial de negociar, argumentar

Um ano depois da Guerra do Iraque, o mundo é mais inseguro e o futuro mais incerto. O bárbaro ataque terrorista na Espanha e a sucessão infindável de ataques terroristas no Iraque e em Israel não deixam dúvida nenhuma sobre isso. Por que tanta insegurança? O século 20 não foi o século da democracia, e o fim da Guerra Fria não foi o capítulo final das ameaças totalitárias?
O mundo tornou-se mais inseguro porque o governo do presidente George W. Bush não se revelou à altura da responsabilidade de governar o país que emergiu do colapso da União Soviética como única grande potência mundial. Em vez de assumir de forma equilibrada a liderança do novo sistema global em que hoje vivemos, ignorou as regras do jogo desse sistema e adotou, de forma unilateral e fundamentalista, uma política equivocada de luta contra o terrorismo islâmico.
O governo americano não compreendeu que o sistema global não é apenas um produto econômico e tecnológico da globalização, mas é também um produto cultural, social e jurídico de um processo histórico que aproximou os cidadãos de todos os países e tornou o mundo uma "aldeia global". O sistema global, embora não seja um Estado, é um sistema político já dotado de regras definidas, que se desenvolveram nos últimos 60 anos, desde o fim da Segunda Guerra e da criação da ONU.
Por outro lado, o governo dos Estados Unidos e uma parte importante da sua população não compreenderam que o terrorismo que nos ameaça não se combate com guerras preventivas contra outros países, mas com o ataque sistemático às suas causas e com repressão policial de suas manifestações. No segundo dia após o 11 de Setembro, o presidente Bush declarou que a guerra já havia começado, embora não soubesse qual inimigo atacar. E ele não estava falando metaforicamente. Atacou em seguida o Afeganistão, que, de fato, abrigava terroristas. Logo após atacou o Iraque, cujo governo não tinha ligação com o terrorismo, mas era culpado de crimes passados, o principal deles o de não ter sido completamente derrotado pelos EUA em uma guerra anterior.
Este segundo ataque foi desastroso. Nenhuma das razões que foram alegadas pelo governo americano se sustentou. Do Iraque não partia ameaça terrorista, nem esse país dispunha de armas de destruição em massa que pusessem em risco a segurança americana. Por outro lado, o argumento de que, por meio da invasão do Iraque e da derrubada do regime de Saddam Hussein, levar-se-ia a democracia àquele país é insustentável de qualquer ponto de vista, a não ser o do imperialismo.
Na verdade, através da guerra preventiva contra o Iraque, os Estados Unidos confundiram sua indiscutível hegemonia militar com os direitos imperiais de potências do passado. Já que eram poderosos, supuseram que poderiam exercer seu poder de forma imperial, ignorando que vivemos hoje sob um sistema global do qual essa possibilidade está afastada. Dessa forma, agiram como um gigante fora do tempo.
Ao se equivocarem tão profundamente, seja em relação à forma de combater o terrorismo, que deve ser implacável, mas não pode servir de pretexto para se imporem militarmente a outros países, seja em relação à natureza do sistema global, os EUA ocuparam o Iraque e depuseram Saddam Hussein, mas perderam a guerra.
Perderam-na porque hoje têm menos poder do que tinham antes da guerra. No último número do "Foreign Affairs", três artigos são inequívocos ao discutirem o déficit de legitimidade dos Estados Unidos em nível internacional. Perderam-na porque romperam a aliança atlântica, que era importante para a segurança mundial. Perderam-na porque todo o mundo, inclusive os Estados Unidos, está hoje mais sujeito a ataques terroristas do que antes. Perderam-na, finalmente, porque hoje os EUA, ao invés de serem vistos como a fonte de segurança para o mundo, como o foram durante tanto tempo, são vistos como a maior ameaça a ela.
Não foram, entretanto, apenas os norte-americanos que perderam a guerra. Perdemos todos, inclusive aqueles que a ela se opuseram, porque a segurança é um bem universal que precisa ser buscado coletivamente. Será, entretanto, que essa perda generalizada é inerente ao sistema econômico e social em que vivemos, ou é produto acidental do controle do governo dos EUA por dois grupos fundamentalistas?
Nada no mundo é acidental. Os fundamentalismos islâmico, judeu e cristão estão em toda parte. Precisamos buscar as origens desse renascimento na incapacidade extrema de uns saberem usar o seu poder e de outros saberem lidar com esse poder. Não existe nenhuma guerra de civilizações, já que nem o islamismo, nem o cristianismo, nem o judaísmo são inerentemente fundamentalistas. Mas existe uma dificuldade essencial de negociar, argumentar e chegar a compromissos. O fundamentalismo é um desvio agressivo e irracional que surge quando os aderentes de uma religião se sentem ameaçados e decidem se isolar em sua própria verdade absoluta. Ele aparece hoje nos ataques terroristas da Al Qaeda, na violência de Israel contra os palestinos e destes contra Israel, na política internacional americana e, mais recentemente, na própria Hollywood, como nos mostra "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson.
Os fundamentalismos, entretanto, já foram derrotados no passado. Desde a Renascença os princípios do humanismo republicano, do liberalismo, do socialismo e da democracia vêm sendo discutidos e incorporados nos sistemas jurídicos, na forma de direitos civis, políticos, sociais e republicanos. Não há razão, portanto, para os fundamentalistas não serem derrotados novamente e para que os princípios liberais, laicos e democráticos, que foram construídos tão árdua e firmemente nos últimos seis séculos, afinal não prevaleçam.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 69, é professor de economia da FGV-SP e pesquisador associado da Maison des Sciences de l'Homme. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).
@ - www.bresserpereira.org.br



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