São Paulo, terça-feira, 04 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O troco da miséria

ABRAM SZAJMAN

O alto custo do dinheiro, expresso pelas taxas de juros mais elevadas do mundo, é só uma das graves anomalias de que padece a economia brasileira. Em que pesem os êxitos alardeados no controle da inflação e do chamado risco-país, há outro preço na raiz das dificuldades para a retomada sustentada do crescimento: é o preço do trabalho, que atende pelo nome de salário.
No Brasil, desde que a princesa Isabel decretou o fim da escravidão, em troca de trabalho pagam-se salários, cujos valores são negociados e contratados entre patrões e empregados, à exceção do salário mínimo, abaixo do qual a lei proíbe remunerar o trabalhador.


A elevação do salário mínimo estimula o mercado e pode gerar um aquecimento do consumo interno


Criado em 1936 e regulamentado em 1º de maio de 1940, o salário mínimo constitui o paradigma legal para que o trabalhador e sua família possam fazer frente aos gastos com alimentação, saúde, habitação e transporte. Ao longo das quase sete décadas de sua vigência, entretanto, o salário mínimo raramente cumpriu essa função. Basta mencionar que o valor da cesta básica hoje oscila entre R$ 120 e R$ 150, fazendo com que apenas o item alimentação absorva a metade ou mais dos R$ 240 em que estava fixado até há pouco o valor do mínimo. Em 1960, cerca de 70% dos trabalhadores recebiam salários iguais ou inferiores ao maior salário mínimo então vigente. Atualmente, apenas 14% dos trabalhadores recebem rendimentos de até um salário mínimo. O número de pessoas que têm rendimentos superiores ao salário mínimo aumentou muito, e os reajustes devidos a essa faixa não são indexados à oscilação do mínimo.
Isso não significa, evidentemente, que possamos prescindir de uma política de recuperação do salário mínimo, para que este se aproxime, ao menos, dos US$ 150 pagos na Argentina -para não falar dos mínimos entre US$ 800 e US$ 900, vigentes nos Estados Unidos e em países da União Européia.
A elevação do salário mínimo estimula o mercado e pode gerar um aquecimento do consumo interno. Como para os cerca de 15 milhões de assalariados que ganham o mínimo temos outro tanto de pensionistas com ordenado idêntico, conclui-se que há 30 milhões de pessoas com rendimento vinculado ao salário mínimo. Daí resulta que, para cada R$ 1 de aumento no salário mínimo, R$ 30 milhões a mais são injetados no consumo. Esse aumento de renda favorece, inicialmente, a compra de produtos de primeira necessidade, geralmente alimentos. Em seguida pode ocorrer uma procura maior por bens duráveis, por meio do crediário.
Assim, do ponto de vista do comércio paulista, qualquer dos valores que foram cogitados -R$ 256, para repor a inflação; R$ 260, o que acabou sendo concedido; R$ 270, como sugeriram alguns políticos; ou R$ 300, como queria a CUT- traria uma melhora às vendas do comércio, sem resultar em custos, pois, em nosso setor, a promessa do presidente Lula de dobrar o valor do mínimo há muito já é realidade (o piso dos comerciários paulistas é de R$ 482). Como se pode ver nas manifestações públicas dos empresários (e não apenas os do comércio), não é do setor privado da economia que partem as objeções ao aumento do salário mínimo.
O impasse que vem à tona nesta época -neste ano com mais força, talvez por ser o presidente da República, pela primeira vez na história, alguém que já sentiu na pele o que é viver com um salário mínimo- consiste em como elevar o valor do mínimo sem colocar em risco o equilíbrio orçamentário e as contas públicas. Isso porque um equívoco histórico vinculou o mínimo aos benefícios previdenciários, criando a armadilha atual: para cada R$ 1 de aumento no salário mínimo, os gastos públicos sofrem um impacto de R$ 141 milhões só no governo federal, segundo dados do Ministério do Planejamento.
É no setor público que as restrições ao aumento do mínimo são maiores, porque o impacto fiscal se dá sobre as contas da Previdência Social, as despesas com seguro-desemprego e abono salarial e as folhas de pagamento das três esferas do governo.
Aqui chega-se ao nó da questão: só quando se desvincular o salário mínimo dos benefícios previdenciários o governo poderá atingir seu objetivo de recompor o poder de compra do mínimo, além da mera reposição da inflação. Esta se fará de maneira independente, para a manutenção do valor real dos benefícios pagos aos aposentados. Outra medida que precisa ser estudada é o salário mínimo regional, que poderá ser muito mais flexível, porque a realidade das empresas do setor privado é muito distinta nos diferentes Estados. As necessidades de consumo também variam em cada Estado, facilitando a determinação de diferentes patamares para o mínimo.
Em resumo, a desvinculação e a regionalização podem fazer com que abril deixe de ser para o salário mínimo o que janeiro é para as enchentes: um mês em que o assunto é discutido apaixonadamente, para depois cair no esquecimento daqueles que não moram em áreas de risco nem dependem do troco da miséria, que não pode ser chamado de salário, nem sequer de mínimo.

Abram Szajman, 64, empresário, é presidente da Federação e do Centro do Comércio do Estado de São Paulo, além de presidente do Conselho de Administração do Grupo VR.


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