São Paulo, sexta-feira, 04 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A tirania fiscal

MARCELO O. DANTAS

O sentimento de absurdo é tão grande que me surpreendo plagiando versos do Drummond: para que tanto imposto, meu Deus?

TODO ANO, o momento de entrega da declaração de Imposto de Renda me enche de estupefação. O sentimento de absurdo é tão grande que me surpreendo plagiando aqueles versos do Drummond: para que tanto imposto, meu Deus? E nenhuma resposta aquieta a pergunta de meu coração.
O Brasil é um país peculiar. Em outras partes do mundo, as cleptocracias se estruturam em torno a estruturas fiscais débeis. Governantes e cortesãos enriquecem se apropriando diretamente das riquezas nacionais.
Em geral, tomam para si parte dos lucros obtidos com a exploração de bens minerais. Dificilmente interferem em atividades produtivas que respondam pela geração de empregos e renda. Quando muito, fazem desaparecer a ajuda internacional, se aproveitando da benevolência das nações amigas. Respeitam, contudo, um antigo tabu: o contribuinte é sagrado.
Estado que não faz nada também não precisa cobrar impostos. Cada um que fique em paz com a sua miséria.
Mais industriosos, países desenvolvidos dão outra leitura ao tabu: impostos altos, serviços bons. O Estado garante educação de qualidade, saúde, previdência, segurança. Há boas bibliotecas e museus por toda a parte.
A cidadania paga caro, mas pede em troca respeito, eficiência e probidade.
Desse padrões ético-morais derivam modelos políticos distintos. As cleptocracias tendem a compor governos autoritários, de caráter quase dinástico. Com algum populismo e doses ocasionais de violência, se mantém a estabilidade. A sociedade se divide entre super-ricos e pobres -praticamente inexistindo classe média.
Já as nações desenvolvidas tendem a consolidar democracias. "No taxation without representation" foi o slogan que lançou a Revolução Americana. Contribuintes devem necessariamente ser cidadãos. Precisam acreditar que partilham o poder e fiscalizam o seu exercício por meio de representantes legitimamente eleitos. Nesses países, existem classes médias amplas e reivindicativas.
Apenas o Brasil inova. Aqui, o contribuinte paga muito e nada recebe em troca. O governo, não é de hoje, se acha no direito de fazer o que bem entende, sustentando o fisiologismo do Congresso para este permanecer dócil. Nossa democracia representativa se tornou prisioneira de filtros negativos, uma espécie de seleção natural às avessas: os piores são os escolhidos. Tente um cidadão de bem se eleger.
Não chegará a lugar nenhum. Uma campanha para deputado custa em média R$ 1 milhão. Para senador, R$ 4 milhões. Os partidos políticos são dominados pelos administradores da máquina, que controlam o caixa dois.
Nesse cenário, toda honestidade é vista com desconfiança: ou o indivíduo está roubando e não quer dividir ou deve ser um idiota completo.
Por que o povo não se revolta? Porque povo não há mais. Chegamos aos tempos pós-modernos da ortodoxia-com-assistencialismo.
A elite dá com uma mão impostos elevados e, com a outra, recebe a polpuda restituição dos ganhos financeiros. Isso quando não dribla os impostos, despejando gastos pessoais na conta das empresas ou enviando parte de seus ganhos a paraísos fiscais, de onde retornarão ao país com o status de "investimento estrangeiro".
Já a massa despossuída escapa dos impostos diretos, mas não percebe que, embutidos nos preços das mercadorias e serviços que consome, estão pesados impostos indiretos.
Enganada pela tributação invisível, vê apenas os benefícios do assistencialismo e se julga sócia do sistema.
Sobra a classe média. Dos profissionais liberais, dos artistas e intelectuais, dos pequenos e médios empresários, dos funcionários weberianos, dos empregados com melhor nível de qualificação, das pessoas que teimaram em estudar, dos homens e mulheres que se esforçam para subir na vida, dos casais que suam sangue para criar os filhos. Esses são os otários.
Pagam impostos escandinavos e recebem serviços africanos. Segurança não há. Nem estradas. Em breve, acabarão os aeroportos. E talvez um dia a luz não acenda mais. De escolas e hospitais públicos as famílias de classe média nem passam perto. Tiram novamente do próprio bolso e pagam caro por um mínimo de qualidade. Seu grande benefício, a educação universitária gratuita, tem os dias contados.
Felizmente, temos um horizonte, uma utopia. Foi FHC quem deu a dica: a solução é acabar com a classe média. Pois se ela está descontente, então que se lhe corte a cabeça. Em seu quarto mandato, o projeto Brasil: século 18 aposta todas as fichas no etanol e garante que seremos o único país na história universal a alcançar o desenvolvimento mediante a extinção da classe média. Será a grande proeza civilizatória desta nossa pátria amada e idolatrada. Salve, salve!


MARCELO OTÁVIO DANTAS, 43, formado em ciências econômicas pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é escritor, roteirista e diplomata de carreira. É Chefe da Divisão de Assuntos Multilaterais Culturais do Ministério das Relações Exteriores.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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