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TENDÊNCIAS/DEBATES
A tirania fiscal
MARCELO O. DANTAS
O sentimento de absurdo é tão grande que me surpreendo plagiando versos do Drummond: para que tanto imposto, meu Deus?
TODO ANO, o momento de entrega da declaração de Imposto de
Renda me enche de estupefação.
O sentimento de absurdo é tão grande
que me surpreendo plagiando aqueles versos do Drummond: para que
tanto imposto, meu Deus? E nenhuma resposta aquieta a pergunta de
meu coração.
O Brasil é um país peculiar. Em outras partes do mundo, as cleptocracias se estruturam em torno a estruturas fiscais débeis. Governantes e
cortesãos enriquecem se apropriando
diretamente das riquezas nacionais.
Em geral, tomam para si parte dos
lucros obtidos com a exploração de
bens minerais. Dificilmente interferem em atividades produtivas que
respondam pela geração de empregos
e renda. Quando muito, fazem desaparecer a ajuda internacional, se
aproveitando da benevolência das nações amigas. Respeitam, contudo, um
antigo tabu: o contribuinte é sagrado.
Estado que não faz nada também não
precisa cobrar impostos. Cada um
que fique em paz com a sua miséria.
Mais industriosos, países desenvolvidos dão outra leitura ao tabu: impostos altos, serviços bons. O Estado
garante educação de qualidade, saúde, previdência, segurança. Há boas
bibliotecas e museus por toda a parte.
A cidadania paga caro, mas pede em
troca respeito, eficiência e probidade.
Desse padrões ético-morais derivam modelos políticos distintos. As
cleptocracias tendem a compor governos autoritários, de caráter quase
dinástico. Com algum populismo e
doses ocasionais de violência, se mantém a estabilidade. A sociedade se divide entre super-ricos e pobres -praticamente inexistindo classe média.
Já as nações desenvolvidas tendem
a consolidar democracias. "No taxation without representation" foi o
slogan que lançou a Revolução Americana. Contribuintes devem necessariamente ser cidadãos. Precisam
acreditar que partilham o poder e fiscalizam o seu exercício por meio de
representantes legitimamente eleitos. Nesses países, existem classes
médias amplas e reivindicativas.
Apenas o Brasil inova. Aqui, o contribuinte paga muito e nada recebe
em troca. O governo, não é de hoje, se
acha no direito de fazer o que bem entende, sustentando o fisiologismo do
Congresso para este permanecer dócil. Nossa democracia representativa
se tornou prisioneira de filtros negativos, uma espécie de seleção natural
às avessas: os piores são os escolhidos.
Tente um cidadão de bem se eleger.
Não chegará a lugar nenhum. Uma
campanha para deputado custa em
média R$ 1 milhão. Para senador, R$
4 milhões. Os partidos políticos são
dominados pelos administradores da
máquina, que controlam o caixa dois.
Nesse cenário, toda honestidade é
vista com desconfiança: ou o indivíduo está roubando e não quer dividir
ou deve ser um idiota completo.
Por que o povo não se revolta? Porque povo não há mais. Chegamos aos
tempos pós-modernos da ortodoxia-com-assistencialismo.
A elite dá com uma mão impostos
elevados e, com a outra, recebe a polpuda restituição dos ganhos financeiros. Isso quando não dribla os impostos, despejando gastos pessoais na
conta das empresas ou enviando parte de seus ganhos a paraísos fiscais, de
onde retornarão ao país com o status
de "investimento estrangeiro".
Já a massa despossuída escapa dos
impostos diretos, mas não percebe
que, embutidos nos preços das mercadorias e serviços que consome, estão pesados impostos indiretos.
Enganada pela tributação invisível, vê
apenas os benefícios do assistencialismo e se julga sócia do sistema.
Sobra a classe média. Dos profissionais liberais, dos artistas e intelectuais, dos pequenos e médios empresários, dos funcionários weberianos,
dos empregados com melhor nível de
qualificação, das pessoas que teimaram em estudar, dos homens e mulheres que se esforçam para subir na
vida, dos casais que suam sangue para
criar os filhos. Esses são os otários.
Pagam impostos escandinavos e recebem serviços africanos. Segurança
não há. Nem estradas. Em breve, acabarão os aeroportos. E talvez um dia a
luz não acenda mais. De escolas e hospitais públicos as famílias de classe
média nem passam perto. Tiram novamente do próprio bolso e pagam caro por um mínimo de qualidade. Seu
grande benefício, a educação universitária gratuita, tem os dias contados.
Felizmente, temos um horizonte,
uma utopia. Foi FHC quem deu a dica: a solução é acabar com a classe
média. Pois se ela está descontente,
então que se lhe corte a cabeça. Em
seu quarto mandato, o projeto Brasil:
século 18 aposta todas as fichas no
etanol e garante que seremos o único
país na história universal a alcançar o
desenvolvimento mediante a extinção da classe média. Será a grande
proeza civilizatória desta nossa pátria
amada e idolatrada. Salve, salve!
MARCELO OTÁVIO DANTAS, 43, formado em ciências
econômicas pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), é escritor, roteirista e diplomata de carreira. É Chefe da Divisão de Assuntos Multilaterais Culturais do Ministério das Relações Exteriores.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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