São Paulo, terça-feira, 04 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os índios na agenda da Rio+10

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Há dez anos, em junho de 1992, a Convenção da Diversidade Biológica, celebrada no Rio de Janeiro, operou uma revolução.
É sabido que o mundo é, curiosamente, dividido em países com grande riqueza biológica -e relativamente pouca tecnologia própria- e países com pouca riqueza biológica -e muita riqueza tecnológica. Isso corresponde ao que se convencionou chamar o Sul versus o Norte, ou o grupo dos 77 países mais a China versus o grupo dos oito países mais desenvolvidos. Ou seja, os pobres têm biodiversidade e os ricos têm patentes.
Até 1992, a biodiversidade -a grande riqueza do Sul- era considerada patrimônio da humanidade, de acesso livre, enquanto o acesso a processos ou produtos patenteados -do Norte- era pago. A revolução da convenção de 1992 consiste no fato de que nela se reconheceu a soberania de cada país sobre seus recursos genéticos. A biodiversidade deixou de ser de livre acesso. Passou a ser entendida como moeda de troca por tecnologia.
Mas não foi somente nesse ponto que a Convenção da Diversidade Biológica alterou o panorama. Ela também reconheceu o papel crucial desempenhado pelas populações indígenas e locais, tanto na conservação da biodiversidade quanto nos conhecimentos associados a ela. O Brasil percebeu a importância estratégica da Convenção da Diversidade Biológica na sua política externa. Rapidamente foi ratificada a convenção -embora a sua regulamentação esteja se arrastando desde a primeira proposta, apresentada há mais de oito anos, pela senadora Marina Silva.
Enquanto, no sudeste asiático, vários países já haviam se mobilizado, o Brasil, com certo atraso, mas grande sucesso, vem encabeçando um bloco latino-americano e do Caribe. Desde outubro de 2001 multiplicaram-se as reuniões de ministros do meio ambiente: o objetivo é apresentar uma frente regional unida e mobilizada na reunião de Joanesburgo, em agosto deste ano, a chamada Rio+10, ou, oficialmente, a Reunião de Cúpula do Desenvolvimento Sustentável, que vai fazer, entre outras coisas, o balanço dos dez anos da Convenção da Biodiversidade.


O Brasil percebeu a importância estratégica da Convenção da Diversidade Biológica na sua política externa


Inexplicavelmente, porém, até agora, nos documentos que resultaram do esforço comum do bloco latino-americano e do Caribe, não há nenhuma palavra sobre populações indígenas e locais. Ora, o Brasil também poderia encabeçar essa frente com bastante orgulho. Afinal, desde 1988 temos uma Constituição que é notável nesse capítulo e o atual governo foi quem mais fez para que ela não ficasse somente no papel.
Até fevereiro de 2002, e contando os dois mandatos, o governo Fernando Henrique Cardoso havia declarado e homologado mais terras indígenas e com maior extensão total do que qualquer de seus antecessores: foram 32 milhões de hectares em 107 áreas declaradas e mais de 41 milhões de hectares em 145 áreas homologadas.
As convenções, como é sabido, são hierarquicamente submetidas às Constituições nacionais. Mas elas são o elo que une cada país a uma comunidade moral internacional, que é hoje representada pelas Nações Unidas e seus vários órgãos e que tem agido como contrapeso à supremacia mundial pretendida pela Organização Mundial do Comércio. O Brasil tem participado ativamente desse bloco moral, com algumas exceções.
Uma dessas exceções, surpreendente, é que a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata de populações indígenas e tribais, ainda não foi ratificada pelo Brasil. Essa convenção, que data de 1989, veio substituir a obsoleta convenção 107, de 1957, da qual o Brasil faz parte -obsoleta porque, inspirada pelo combate ao apartheid da África do Sul, ela visava essencialmente a assimilação (chamada então de integração) dessas populações.
A convenção 169, que a substituiu, constitui um "aggiornamento" salutar. É o primeiro instrumento internacional que, tal qual a Constituição brasileira, no artigo 231, reconhece o direito dos povos indígenas a viverem de acordo com sua cultura. O México usou-o, por exemplo, nos acordos de San Andrés, em 1996, para pôr fim aos conflitos étnicos em Chiapas. Nesse capítulo, o Brasil figura como exceção no bloco latino-americano: o México ratificou a convenção 169 em 1990 e foi seguido, em ordem cronológica, por Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Paraguai, Peru, Honduras, Guatemala, Argentina e Venezuela.
Hoje, seria importante um gesto do Brasil para se juntar ao bloco latino-americano no tocante aos direitos humanos das populações indígenas. A ratificação da convenção 169 seria reconhecida como uma iniciativa nessa direção.


Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga, é professora de antropologia da Universidade de Chicago, professora titular aposentada da USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.



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