São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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Brasil e América do Sul

HELIO JAGUARIBE


É indispensável, finalmente, que o Brasil empregue decisivos elementos pragmáticos de persuasão na sua política sul-americana


A CRISE de nosso relacionamento com o presidente Evo Morales veio evidenciar graves insuficiências de nossa política com relação à América do Sul.
Dando ativa continuidade a tendências que há muito se achavam presentes na política externa brasileira, o presidente Lula acertadamente fez da integração sul-americana o objetivo principal de sua política externa. Procede essa política da correta constatação de que, nas presentes condições do mundo, poucos países dispõem, isoladamente, de possibilidades para preservar sua identidade nacional e manter um destino histórico próprio.
Os países europeus, a despeito de seu alto nível de desenvolvimento, se agruparam na União Européia como meio de preservar, nestas novas condições do mundo, seus grandes interesses nacionais.
É certo que China e Índia, países continentais, estão logrando, isoladamente, manter elevadas taxas de crescimento econômico e de modernização, tendo se tornado relevantes protagonistas no cenário internacional.
Também é verdade que, na América do Sul, o Brasil é o país que dispõe de melhores condições para manter um destino histórico próprio, graças à conjugação de grande massa crítica, em termos populacionais, de recursos naturais e de amplitude territorial, com um bastante elevado nível de desenvolvimento econômico e científico-tecnológico, e uma extremamente alta taxa de integração nacional.
Nossa alta taxa de integração nacional, entretanto, superior à de muitos países europeus e de quase todos os sul-americanos, contrasta, dramaticamente, com uma extremamente baixa taxa de integração social, decorrente das abissais distâncias que separam os setores educados e prósperos do país das grandes massas.
Daí a necessidade, por parte do Brasil, de contribuir para a integração do continente, visando a converter a Comunidade Sul-Americana de Nações, de sua condição apenas declaratória, em um sistema efetivamente operacional de livre comércio e ativa cooperação econômica e política. É correto esse objetivo brasileiro, e nele importa sempre insistir. Para tanto, porém, é indispensável ao Brasil corrigir as graves deficiências que se fazem sentir em sua política sul-americana.
Em última análise, três são as suas principais deficiências: 1) tentativa de exercício de liderança regional sem apropriada delegação e necessário consenso; 2) insuficiente atendimento, no âmbito do Mercosul, dos interesses dos demais parceiros; e 3) exclusivo emprego de argumentação racional, não acompanhado de elementos pragmáticos de persuasão.
Seria ocioso desenvolver a tese de que a liderança de um país depende, além de outras condições, da medida em que ela conta, no respectivo grupo, com o consenso dos demais, por constatarem que o que está em jogo é do interesse de cada um deles. Lideranças de caráter não coercitivo não se presumem nem podem ser auto-assumidas, mas têm de decorrer de modalidades explícitas ou implícitas de delegação.
O Brasil, de forma não desastrosa, mas contraproducente, ao assumir, sem consultas, diversas iniciativas internacionais, as priva de possibilidades de êxito. Mencione-se, ilustrativamente, nossa aspiração a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, para a qual, entre outros requisitos, a concordância da Argentina é fundamental. Como explicar que Lula não tenha publicamente convidado a Argentina a também se candidatar, declarando que aquele dos dois países que venha a ser eleito se consideraria representado pelo outro?
No que tange ao Mercosul, é patente a necessidade de se dar efetivo atendimento a justificadas demandas do Uruguai e do Paraguai. É igualmente patente a necessidade de se corrigir o desequilíbrio industrial que se formou entre o Brasil e a Argentina, país que já teve a melhor indústria leve da região e que poderá voltar a tê-la, mediante um projeto conjunto de industrialização com o Brasil.
É indispensável, finalmente, que o Brasil empregue, adicionalmente a uma argumentação racional, decisivos elementos pragmáticos de persuasão na sua política sul-americana.
Essa necessidade é tanto maior quanto menos racionais e mais emotivos sejam certos dirigentes da região, como, notadamente, o presidente Evo Morales e, mais moderadamente, o presidente Kirchner.
Em última análise, trata-se do fato de que a integração sul-americana, considerada com competente objetividade, é algo de que depende totalmente a preservação da identidade nacional e do destino histórico dos países da região, sendo o Brasil uma exceção. A integração nos é altamente conveniente, mas não indispensável.
Assim é que nossa política sul-americana deve conter, com toda a objetividade e com inequívocos elementos comprobatórios, um "plano B", pelo qual se evidencie que, com ou sem integração e com ou sem a cooperação da Argentina, o Brasil dispõe de uma estratégia exeqüível e eficaz para se desenvolver e, isoladamente, assegurar a preservação de sua identidade nacional e de seu destino histórico.

HELIO JAGUARIBE , 82, sociólogo, é decano do Instituto de Estudos Políticos Sociais e autor de, entre outras obras, "Brasil: Alternativas e Saídas".


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