São Paulo, Sexta-feira, 04 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Produção industrial de derivados do sangue


No Brasil, milhares de pacientes usam derivados do sangue importados quase totalmente de países desenvolvidos


DALTON CHAMONE

No Brasil, milhares de pacientes usam derivados industrializados do sangue importados quase totalmente de países desenvolvidos. Nenhum país latino-americano foi capaz de desenvolver tecnologia para produzir hemoderivados em escala industrial. A produção brasileira restringe-se a uma pequena quantidade de albumina no Hemocentro de Pernambuco, na Fundação Pró-Sangue de São Paulo, no Hemocentro de Brasília e em uma indústria privada gaúcha.
Quando uma pessoa doa sangue, os hemocentros o separam em pelo menos três componentes: glóbulos vermelhos, usados em casos de anemia (acidentes, cirurgias, transplantes, doenças crônicas etc.); plaquetas, úteis para impedir hemorragias (transplantes, quimioterapias etc.); e plasma, destinado a pacientes com doenças crônicas ou sangramentos. Deles, o menos usado é o plasma, que, dependendo da sua destinação industrial, pode ser armazenado por um período de um a três anos. Com ele, podem-se fabricar albumina, imunoglobulinas e fatores anti-hemorrágicos, para hemofilia e doenças afins.
Produzida em condições rigorosamente padronizadas, a albumina é usada em pacientes com perda crônica dessa substância ou que dela precisem para evitar inchaço ou facilitar a reparação de tecidos; além disso, em moléstias cardíacas avançadas, insuficiência renal e queimaduras graves. As imunoglobulinas reforçam a defesa do organismo em pessoas que, por deficiência dessa substância, têm baixa resistência a infecções, em portadores do vírus da Aids com complicações infecciosas e em moléstias de origem imunológica.
Os fatores anti-hemorrágicos (dos tipos A, fator 8, e B, fator 9), importados, são os que dão maiores lucros às indústrias privadas. Sua fabricação é mais refinada, em virtude de métodos de inativação dos vírus que escapem dos controles clássicos. Mas eles são essenciais à vida de milhares de pacientes nascidos com uma alteração genética que resulta na sua não-produção. Sua falta ocasiona sangramentos incontroláveis.
Além dessas substâncias, as indústrias produzem outras menos populares, também chamadas de hemoderivados (fator 13, proteína C, concentrado de fatores, fatores ativados etc.).
Há duas maneiras de produzir muitas delas. A mais antiga, que data dos anos 50, usa o plasma como matéria-prima. Esse método tem uma história trágica de contaminações por Aids e hepatites A, B e C, pois o plasma humano pode conter uma série de agentes causadores de doenças, muitas só conhecidas em 1989 (como a hepatite C). Mas o problema mais intrigante, ainda sem resposta, diz respeito à transmissão da "doença da vaca louca" para seres humanos por meio desses produtos. É preciso definir melhor o modo de detecção desse agente causador, o príon.
Outro modo de produção é o da engenharia genética, que exige alta tecnologia. Ao que tudo indica, seu uso será rotineiro em hemofílicos, pois já há no mercado mundial produtos cada vez mais aperfeiçoados. Esses substitutos do plasma têm as vantagens de não transmitir viroses e de ser mais puros.
Há diversas hipóteses para o Brasil produzir hemoderivados. A maneira mais simples seria processar o plasma em indústrias do exterior, já adotada entre Cingapura e Austrália e entre República Tcheca e Espanha. Não se adquire, assim, conhecimento científico para aplicações de tecnologia mais avançada nem se criam empregos em técnicas finas; mas esse poderia ser um procedimento intermediário, até que se construíssem as fábricas no Brasil.
Outra hipótese seria comprar a tecnologia de países desenvolvidos e processar o plasma internamente. Pelas dimensões continentais, diferenças climáticas, diversidades culturais e desigualdades técnicas entre os vários bancos de sangue e hemocentros, o Brasil deveria ter mais de uma fábrica: uma para Norte e Nordeste e duas para Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Embora ilógica economicamente, a instalação delas permitiria o desenvolvimento tecnológico nas regiões e ajudaria no controle dos centros que coletam plasma.
Deve-se ter em conta, porém, que da decisão de adquirir a indústria à sua plena produção correm, no mínimo, de cinco a seis anos. Ademais, há certos cuidados a tomar. A fábrica não deve estar em grandes cidades, nas quais a poluição é a regra, pois o custo com filtros de ar encarece o produto final. Não se pode usar a água comum que abastece grandes centros urbanos; ela contém diversos produtos que encurtam muito a vida útil dos filtros, tornando a produção dispendiosa. A água deve ser de boa qualidade, de preferência obtida em poços artesianos de grande vazão.
A grande questão, contudo, é se daqui a seis anos a técnica de obtenção de hemoderivados pelo plasma ainda será válida. Para a produção de imunoglobulinas, sim. Para os fatores 8, 9 e talvez albumina, não. As técnicas de engenharia genética estão cada vez mais presentes na área de hemoderivados. Suas vantagens também podem estar ligadas à ausência de vírus e dos temidos príons. Certamente, atento a esses problemas, o ministro José Serra será bastante cauteloso para não tomar decisões açodadas quanto à escolha da tecnologia, evitando adquirir sucata tecnológica e comprometer todo o futuro desses produtos, essenciais para o tratamento de diversas moléstias.


Dalton Chamone, 55, é diretor-presidente da Fundação Pró-Sangue/Hemocentro de São Paulo, professor titular de hematologia e hemoterapia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e consultor da Organização Mundial da Saúde para produtos biológicos.



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: José Álvaro Moisés: Existe política para o cinema?

Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.