São Paulo, quinta-feira, 04 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O ensino jurídico brasileiro

CARLOS MIGUEL AIDAR

A flexibilização do ensino jurídico no Brasil vem tendo impacto negativo sobre a formação dos bacharéis. Ela começou com a expansão das faculdades e avança, agora, sobre o conteúdo dos currículos e o prazo de duração dos cursos.
Abrir uma faculdade de direito no Brasil ficou tão fácil quanto abrir um partido político. Sabemos o que aconteceu com os partidos brasileiros e não desejamos o mesmo destino pulverizado para o ensino jurídico.
O curso de direito não apenas credencia o bacharel ao exercício da advocacia. Vai além, forma os quadros do Poder Judiciário no Brasil. Portanto zelar pela qualidade do ensino jurídico é garantir que o jurisdicionado não seja vítima de uma Justiça de segunda linha, apenas para cumprir o discurso oficial de que a flexibilização é a única maneira de democratizar o acesso ao ensino superior.
O ritmo de abertura dos cursos de direito no país é assustador. São mais de 400 cursos, com centenas de pedidos à espera de autorização provisória do Ministério da Educação. De 1995 a 97, chegaram à OAB 589 pedidos de abertura de cursos, dos quais só 31 tiveram parecer favorável. A Ordem não tem poder de veto, mas é guardiã da qualidade do ensino jurídico no país e está conseguindo provar a tese de que, conforme cresce o número de vagas nos cursos de direito, diminui a qualidade do ensino. Essa correlação pode ser constatada nos resultados do exame de Ordem em São Paulo, onde a média de aprovação é de 19%, embora seja um exame que busca aferir conhecimentos jurídicos básicos.
Curiosamente, a mesma prova, aplicada no mesmo dia e horário pela seccional do Espírito Santo, obteve 37% de aprovação, o dobro de São Paulo.
Na esteira da flexibilização, chegou-se a criar uma nova modalidade institucional, as "franquias" dos campi, modo de mercantilização do ensino que a OAB paulista combateu, inclusive, com ações na Justiça. A rentabilidade do "negócio do direito" é estimada em 25%. Os investimentos do empresariado do setor são pequenos, não exigem equipamentos e laboratórios custosos. No entanto eles também deixam de investir em corpo docente qualificado, boas bibliotecas, boa estrutura de ensino.
Entrar nessas instituições é fácil. Muitas contam com menos de um candidato por vaga e há até algumas que vão "garimpar" alunos nos campi dos concorrentes, oferecendo descontos nas mensalidades. Essa falta de critério tem como paradigma extremo a aprovação de um candidato analfabeto em um vestibular para direito no Rio de Janeiro, no ano passado.


O mínimo que se exige é uma formação que dê ao aluno capacidade para pesquisar, compreender e redigir textos jurídicos


Sendo mais condescendente na abertura dos cursos de direito, esperava-se que o MEC fosse mais rígido na avaliação. Não é o que se constata. O Exame Nacional de Cursos, o Provão, gerou um fator de classificação das faculdades positivo, mas desencadeou, sobretudo, o surgimento de um novo mercado. Muitas instituições treinam seus alunos antes da referida prova, apenas para que a faculdade possa ser bem colocada no ranking do governo.
Os cursos de direito possuem grande demanda, em decorrência da boa perspectiva de emprego na advocacia e da possibilidade de seguir carreira por meio de concurso público para juiz ou promotor. Mas quais são as chances desse aluno de direito, capacitado de forma precária, em um concurso para a magistratura? Sem dúvida, nenhuma.
No início da década de 80, a média de aprovados no concurso para juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo era de 7% dos candidatos. Hoje, ela não atinge 2%. No Ministério Público, de 6.659 inscritos em concurso recente, apenas 52 conseguiram aprovação.
Diante desse quadro, constatamos que a expectativa da maioria dos estudantes de direito será frustrada. Se não conseguem ser aprovados no exame de Ordem, não existe carreira para eles, não existe futuro no Judiciário. Está havendo, portanto, um estelionato do aluno que paga para ter formação jurídica, mas não conseguirá exercer a profissão porque sua capacitação é precária. Há casos piores, de cursos que não foram reconhecidos ou são descredenciados pelo MEC .
A segunda flexibilização do ensino jurídico é recente e atinge os currículos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação foi criada para dar novas perspectivas à estrutura e ao programa de ensino. O Conselho Nacional de Educação, por sua vez, tem como competência definir a regra genérica, que atenda a lei, sem criar direito novo. Com o parecer 146/ 02, do CNE, não se estará modernizando a grade curricular, mas a vaporizando, com o fim do conteúdo mínimo.
Mais uma vez, o Estado planeja, interpreta e define em prejuízo das normas constitucionais e da LDB, que, quando criou as chamadas diretrizes curriculares, visava modernizar a grade curricular, permitindo que os cursos de direito incluíssem novas disciplinas, além das tradicionais. O mínimo que se exige é uma formação geral, jurídica e humanística que dê ao aluno capacidade para pesquisar, compreender e redigir textos jurídicos. Ou teremos advogados inaptos para redigir uma simples petição.
O mesmo parecer dá ensejo à terceira mazela da flexibilização. Além da atualização curricular, a fixação de cargas horárias, de acordo com o parecer 100/02, que reduz de cinco para três anos a duração dos cursos, o que é uma regra específica, que fere a legislação de ensino. A diretriz também propõe que a monografia final seja opcional. Diante dessas mudanças, pode-se prever para o direito um lugar nos cursos sequenciais (de dois anos) ou a retomada da epidemia de uma praga que considerávamos extinta: as faculdades de final de semana.
A redução da duração dos cursos não ajudará na formação dos alunos, mas será uma solução para a inadimplência das anuidades. Mais uma vez, a qualidade do ensino será sacrificada em nome do mercantilismo educacional.
Embasado pelos argumentos disponibilizados pelas seccionais de todos os Estados, o Conselho Federal da OAB está propondo ao MEC a revisão do parecer 146/02. Até onde se sabe, é plano do ministro da Educação manter os cursos de nível superior em três anos, para que aumente o número da população formada em grau universitário, o que ampliaria a performance educacional brasileira para organismo internacionais que investem no país.
O futuro do ensino jurídico não nos parece claro ou promissor. O número de escolas é excessivo, a formação dos alunos é precária, o mercado não absorve tantos formandos e se torna mais excludente, preferindo egressos de faculdades de primeira linha, que tradicionalmente obtêm índice de aprovação acima de 90% nos exames de Ordem.
Grande parte das instituições de ensino jurídico, hoje, não forma, não pesquisa, não tem compromissos sociais e profissionais. E, desde já, podemos podemos detectar os prejuízos que os maus profissionais do direito causam em sua atuação, a despeito de todos os "filtros". Tornam-se advogados sem a devida qualificação, podendo impor significativos danos a seus clientes.


Carlos Miguel Aidar, 54, advogado, é presidente da seccional paulista da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).



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