São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Chutando a escada

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Quando vemos os países ricos negociarem duramente com os países em desenvolvimento seus interesses comerciais, por que devemos acreditar que em outras circunstâncias, quando se propõem a aconselhá-los sobre como alcançar o desenvolvimento, não estejam na verdade defendendo só seus próprios interesses? Por que é razoável para os países pobres supor que as agências que os países ricos criaram para dar esses conselhos atendam aos seus interesses nacionais, e não aos interesses dos países que de fato as controlam?
Alguém poderá dizer que essas perguntas são impertinentes. Como, porém, é possível compreender que, enquanto o Brasil não aceitava esses conselhos, de 1930 até 1980, desenvolveu-se de forma extraordinária e parou de crescer desde que passou a aceitá-los? Ou como explicar que um grupo de países asiáticos tem experimentado um extraordinário desenvolvimento na medida em que adota reformas capitalistas, mas não as reformas que os países ricos aconselham, por meio do FMI e do Banco Mundial?
Alguém poderá sugerir que esses fatos são mera coincidência. Ou que as perguntas não correspondem a fatos. Elas, porém, encontraram resposta extraordinária em livro do professor de economia da Universidade de Cambridge Ha-Joon Chang que acaba de ser publicado no Brasil. Seu título é curioso, "Chutando a Escada" (ed. Unesp), uma expressão que Chang encontrou em Friedrich List. Esse economista, que teve poderosa influência sobre Roberto Simonsen, argumentou, em 1841, contra a adoção de políticas liberalizantes recomendadas pela Inglaterra e a favor de uma política ativa de desenvolvimento, com teses fundamentais para que aquele país, pouco depois, entrasse num acelerado processo de crescimento.
O grande economista alemão afirmou e demonstrou com exemplos históricos que os países que primeiro logravam se desenvolver "chutavam a escada" ou "puxavam o tapete", para impedir que os demais países os seguissem e lhes fizessem concorrência. A Inglaterra, em relação a suas colônias (ou às semicolônias, como foi o caso do Brasil em 1810), teve nesse sentido uma política muito clara, que, no limite, visava impedir que o outro país se industrializasse.
Em seu breve mas denso livro, Chang mostra, com um grande número de evidências, que os países ricos, ao proporem um determinado conjunto de políticas e de reformas, estão agindo exatamente da mesma maneira. Naturalmente as práticas são mais sofisticadas e estão amparadas na ortodoxia convencional dominante, mas a lógica é a mesma: trata-se de chutar a escada, criando dificuldades para que os novos países industriais, que surgiram nos anos 70, possam competir com os países industrializados na exportação de produtos com alto valor agregado.
Chang distingue as políticas econômicas das instituições. Ele mostra que todos os países, inclusive a Inglaterra e os EUA, usaram de políticas de proteção comercial e de políticas industriais e tecnológicas ativas. As duas únicas possíveis exceções foram a Suíça e a Holanda. E, na grande maioria dos casos, o Estado investiu na infra-estrutura e em setores capital-intensivos. Dessa forma, quando os atuais países desenvolvidos se desenvolveram, usaram de políticas econômicas que agora condenam.


As políticas recomendadas por Washington e Nova York são principalmente uma forma de puxar o tapete
Quanto às instituições, como a garantia da propriedade e dos contratos, o autor mostra, primeiro, que, na época em que os países desenvolvidos se industrializaram, suas respectivas instituições eram muito menos desenvolvidas do que as atuais instituições dos países em desenvolvimento; segundo, que, na verdade, a maioria das instituições que hoje são recomendadas aos países em desenvolvimento foram o resultado, e não a causa, desse desenvolvimento.
O livro do professor de Cambridge, entretanto, não critica a política recomendada pelos ricos de crescer com poupança externa através da abertura da conta capital. Embora os países ricos tenham crescido com sua própria poupança, seguindo o lema simples de que "o capital se faz em casa", não hesitam hoje em aconselhar os países em desenvolvimento a se endividarem financeiramente e a disputarem investimentos diretos (endividando-se patrimonialmente), como se estas fossem as duas únicas maneiras de financiar o desenvolvimento. Em conseqüência, os países que adotaram tal política nos anos 90 perderam o necessário controle sobre sua taxa de câmbio e transformaram em consumo a poupança externa recebida.
É preciso reconhecer que os países ricos, particularmente os EUA, por um período de 30 anos, após a Segunda Guerra Mundial, baixaram sua guarda e se preocuparam em promover o desenvolvimento das demais nações. Estavam otimistas e se mostraram generosos. A partir dos anos 70, porém, quando surgiram os novos países industriais, essa atitude foi abandonada. Hoje é impossível compreender a onda neoliberal, globalista e "dependentista" que então se iniciou sem levar em conta essa mudança.
Geralmente essa onda ideológica conservadora é explicada como uma luta do mercado contra o Estado (o que facilita a alienação das elites empresariais locais), mas esse é apenas um lado da questão. As políticas recomendadas por Washington e Nova York são principalmente uma forma de chutar a escada ou de puxar o tapete. São uma reação, geralmente inconsciente, mas nem por isso menos perigosa, das elites econômicas e políticas dos países ricos para fazer frente à competição dos novos países industriais.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, é professor de economia da FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outras obras, "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (Editora 34).


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