São Paulo, quarta-feira, 04 de agosto de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Pela democracia
MARCOS PEIXOTO MELLO GONÇALVES e ROBERTO ROMANO
Os brasileiros deram, então, um gigantesco passo democrático, optando por uma democracia que respeita a autonomia individual e grupal em face do poder político do Estado. Assim, incorporaram à Constituição promulgada os direitos fundamentais, civis, políticos, econômicos e sociais constantes dos documentos internacionais. Soberanamente, o povo quis garantir a defesa da cidadania, dos cidadãos e das cidadãs, dos grupos intermediários entre os indivíduos e o Estado, da autonomia da sociedade civil, dos interesses coletivos e difusos, prescrevendo a defesa da ordem democrática, da democracia. Esse, sim, é o primeiro princípio do regime político adotado, regime que rejeita a vida subjugada ao direito da força, para consagrar o paradigma da vida em sociedade sob a força do direito, da lei, do conjunto das leis, todas dependentes e conformes à Lei Maior, à Constituição do país. E quem deve defender a democracia, a ordem democrática, a lei, a força do direito, para cumprir a vontade soberana do povo e garantir a cidadania, a liberdade e a autonomia individuais e grupais em face dos abusos, de quaisquer abusos, praticados por quem quer que seja? Todos. Todos nós temos meios de o fazer, por exemplo, através do direito de petição (CF, art. 5º, 33), bem como de muitos outros meios constitucionais postos à nossa disposição. Entretanto o povo brasileiro, soberanamente, encarregou um corpo de advogados de, mediante um dificílimo concurso de provas e títulos, defender a sociedade; e resolveu pagar a esses advogados, por meio dos tributos que recolhe ao Estado, agrupando-os em uma instituição chamada Ministério Público. Da mesma forma, o povo brasileiro resolveu atribuir a um órgão, o Supremo Tribunal Federal, o poder de dar a última palavra sobre com quem está o direito, de acordo com a Constituição brasileira. Democratas, julgamos que negar a verdade de fatos comprovados, descobertos pelo Ministério Público e expostos à luz da cidadania, a fim de beneficiar quem abusou, seria corrupção institucional. Estamos certos, porém, de que o Supremo, no caso de julgar sobre a liberdade de quem abusou do dinheiro público, tomará posição favorável à democracia, ao direito e à ordem republicanos, rejeitando toda e qualquer tentativa do poderoso da vez. É por essa razão que esperamos do STF, no julgamento de quem desviou recursos públicos do Sistema Único de Saúde, que encare a substância democrática da questão. E não incida, ainda que de boa-fé, no equívoco de separar e sobrepor a forma à matéria, castrando de roldão o poder de fiscalizar o cumprimento da lei, civil e criminal, atribuído pela Constituição ao Ministério Público. Fazemos esse alerta porque estamos muito preocupados. Não podemos degenerar para aquela situação tão bem descrita por Montesquieu, quando demonstrou "como a menor modificação na Constituição acarreta a ruína dos princípios" ("Do Espírito das Leis", livro 8, 14): "Aristóteles fala-nos da República de Cartago como de uma República muito bem regulamentada. Políbio diz-nos que, por ocasião da Segunda Guerra Púnica, existia em Cartago esse inconveniente: o Senado perdera quase toda a autoridade. Tito Lívio ensina-nos que, quando Aníbal retornou a Cartago, descobriu que os magistrados e os principais cidadãos desviavam em seu benefício a renda pública e exorbitavam seus poderes. A virtude dos magistrados decaiu, portanto, com a autoridade do Senado; tudo decorreu do mesmo princípio". Marcos Peixoto Mello Gonçalves, 59, professor de ética e cidadania aplicada ao direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é autor de "Pluralismo Organizado: uma nova visão do direito econômico". Roberto Romano, 58, professor de ética e filosofia política da Unicamp, é autor de "O Desafio do Islã" (ed. Perspectiva, 2004). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Guilherme Afif Domingos: Pago, logo exijo! Índice |
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