São Paulo, sexta-feira, 04 de agosto de 2006

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Escapismo de volta

Idéia de constituinte para reformar a política não faz sentido; Carta de 1988 já oferece os meios para alterar as regras

O DEBATE público no Brasil está acostumado a identificar soluções idílicas sempre que problemas crônicos em nossa sociedade se manifestam com mais intensidade.
Se há crise na segurança, então é preciso chamar o Exército; se negros não chegam à universidade pública, instalem-se cotas; se há caixa dois nas campanhas, crie-se o financiamento público exclusivo; se há corrupção no Executivo e no Legislativo, proceda-se à reforma política; se as reformas não avançam, convoque-se uma miniconstituinte.
A ambição de reformar e consertar a sociedade de cima, pela força de ações fundadoras, é um tema antigo na tradição brasileira. Já camuflou interesses autoritários no passado, mas no período democrático contemporâneo se reveste mais de escapismo. Tem se manifestado, na forma geral de demagogia, quando os meios ordinários para conquistar avanços numa democracia já constituída parecem lentos ou ineficientes demais para dar uma resposta, no plano do marketing, a uma crise candente.
A digressão é necessária pois decifra a proposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de chamar uma assembléia constitucional específica para realizar uma "reforma política". Nem se questione -até porque, neste espaço, essa crítica tem sido feita com bastante freqüência- a desconexão lógica que existe entre a idéia genérica de mudar algumas regras da representação popular e o objetivo de combater a corrupção na esfera pública.
Que sentido faz convocar uma assembléia constituinte, ainda que restrita, quando todos os meios para modificar as normas, inclusive as que regulam a representação política, estão dados pela Carta de 1988? Constituintes só se justificam quando há rupturas institucionais, mudanças de regime. Do contrário, o instrumento se banaliza e, com ele, a própria democracia.
Na hipótese benigna, o objetivo de eleger pessoas sem compromisso com a lógica partidária para representar melhor os "anseios da sociedade" é uma quimera. Na realista, é um estratagema do governo para exercer maior influência sobre os constituintes. De todo modo, as pessoas a serem eleitas serão sempre "políticos" e votarão de acordo com uma lógica resultante da pressão dos grandes partidos, do governo e dos setores influentes da opinião pública -exatamente como ocorre hoje com deputados e senadores "comuns".
O essencial da "reforma política" se resolveria com uma lei ordinária (aprovada por maioria simples no Congresso) impedindo alguém que muda de legenda de candidatar-se pelos quatro anos seguintes. Esse dispositivo, associado à entrada em vigor -a partir da eleição de outubro- da cláusula de barreira, favoreceria a formação de dois corpos estáveis (um oposicionista, outro situacionista) no Congresso Nacional. Já seria um ganho considerável, dada a balbúrdia que tem prevalecido nas duas Casas.
Que não se espere, porém, que tal plataforma venha a minimizar a corrupção federal. Isso não é o objetivo nem está ao alcance de nenhuma reforma política.


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