São Paulo, terça-feira, 04 de outubro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O problema é o caixa 3

AUGUSTO DE FRANCO

De tanto repetir a mesma coisa, o governo está conseguindo sulcar uma versão: a de que todo o problema se resume a caixa dois de campanha, expediente comum às velhas práticas da política brasileira. Mas o problema maior que está em tela no momento não é o caixa dois, e sim o caixa três.
Caixa dois é o nome do esquema paralelo de "fundraising" que tenta captar recursos não-contabilizados para despesas de campanha eleitoral. Todos os partidos (ou quase todos) -não há por que negar- o usaram em algum momento, em maior ou menor escala.


Caixa 3 visa ganhar não uma eleição, mas controlar os meios eleitorais para garantir a vitória em futuros pleitos


É condenável, todos admitem. Mas se diz que é uma conseqüência imposta pelo nosso imperfeito sistema de financiamento de campanhas. E, assim, não se trataria de escolher agora alguém para pato, de punir o PT por, confessadamente, ter praticado tal esquema, poupando injustamente os demais que também o utilizaram. Tratar-se-ia, pelo contrário, de fazer uma reforma política para coibir esse tipo de prática.
O argumento não deixa de ter sua justeza. É uma tese importante de defesa e assim deve ser aceita. O que não se pode aceitar -a menos que queiramos passar por idiotas- é que todos os malfeitos do atual governo e do seu partido se resumam ao fato de terem recaído no velho esquema de caixa dois.
O PT fez caixa dois. Mas fez mais do que isso. Ocupando o governo, começou a engordar um inédito caixa três.
Sim, caixa dois é comum, mas caixa três é uma novidade. Parecem a mesma coisa, mas não são. Caixa dois tem objetivos eleitorais. Caixa três também tem. Mas não como o caixa dois, que visa a ganhar uma eleição determinada e que, portanto, se faz e se desfaz de acordo com o calendário institucional. Caixa três, pelo contrário, é permanente porque visa ganhar não uma eleição, mas controlar os meios eleitorais tentando garantir a vitória em futuros pleitos (no plural mesmo, à mexicana).
Caixa dois é usado de quatro em quatro anos e se destina à vitória episódica. Caixa três é usado continuamente e pretende estabelecer uma hegemonia de longa duração.
O chamado valerioduto alimentava, fundamentalmente, o caixa três. O grosso dos recursos que trafegaram por esse duto foi mobilizado em 2003, depois do período de campanha, já com Lula no governo. A desculpa dos empréstimos bancários de um abnegado Valério é tão ridícula quanto a das hipotéticas operações colloridas no Uruguai.
O "mensalão" não tem necessariamente a ver com caixa dois. Mensalão faz parte do caixa três. Mas caixa três também não é sinônimo de mensalão, pois não é um fundo constituído apenas para dar mesadas a parlamentares.
O caixa dois praticado pelo PT está provado, porque houve confissão do tesoureiro do partido e, inclusive pasmem! do presidente da República. Mas o caixa três praticado pelo PT no governo também está provado na medida em que o dinheiro do valerioduto foi usado, como noticiou a imprensa, fora de períodos e objetivos eleitorais, até para pagar advogados para limpar a imagem do PT em Santo André. Ou seja, está provado que havia um caixa três para pagar tudo o que fosse necessário para garantir a hegemonia do governo do PT e não apenas no parlamento, de vez que inclusive o Fórum Social Mundial recebeu recursos das contas valerianas.
Agora vêm Lula e o PT dizerem que o caixa três é o mesmo caixa dois. Pode até ser. Mas, se for, é ainda mais grave. Significa, ao contrário do que inventaram para nos enganar, não que só houvesse caixa dois e, sim, que só havia caixa três e que o dinheiro criminoso para financiar ou pagar dívidas de campanhas foi um desvio interno de recursos do caixa três. Nesse caso, a dose de dolo seria maior. Antes mesmo de ganhar as eleições, o PT já imaginava montar um fundo ilegal para falsificar a democracia, comprando com dinheiro vivo apoios para fazer maiorias em todas as instituições nos parlamentos, nas organizações da sociedade civil etc. visando controlá-las por meios ilícitos.
Caixa dois é um problema. Mas o problema maior é o caixa três. Enquanto o caixa dois é como um tiro de pistola na democracia, o caixa três transforma o regime democrático em alvo de uma saraivada de obuzes de grosso calibre.
Lula pode dizer que não é responsável pelo caixa dois, embora dele tenha se beneficiado, como já ficou evidente no depoimento de Duda (e isso passou batido diante dos olhos de nossa anêmica oposição). Mas, se é responsável pelo caixa três, então não poderia continuar, nem mais um dia sequer, na chefia do governo e do Estado.
Para continuar no governo com legitimidade, Lula tem de dizer à nação se quem o traiu, para além de fazer caixa dois, fez também caixa três (ou se só fez caixa três, o que é ainda mais grave). Enquanto não diz e não toma providências para processar tais antidemocráticos meliantes abrigados em seu governo ou em seu partido, está incorrendo em crime de responsabilidade.
Antes de decidirem sustentar Lula até o fim de seu mandato, as oposições deveriam verificar não apenas se será usado novamente o caixa dois em 2006, mas se nesses doze meses que nos separam do pleito continuará também sendo usado o caixa três.

Augusto de Franco, 55, é analista político do site e-Agora ( www.e-agora.org.br) e autor de, entre outros livros, "Capital Social". Foi membro do comitê executivo do Conselho da Comunidade Solidária no governo FHC (1995-2002).


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