São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O aborto do feto anencéfalo

CARLOS VELLOSO

A revogação, pelo Supremo Tribunal Federal, da liminar concedida pelo ministro relator, em decisão monocrática, em período de recesso do tribunal -decisão, aliás, bem fundamentada-, no caso do aborto do feto anencéfalo tem suscitado manifestações diversas, que demonstram, de regra, desconhecimento do que foi efetivamente decidido pela Corte Suprema.
Vamos ao caso: a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, invocando o art. 1º da lei 9.882, de 1999, propôs argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF nº 54-DF), indicando como preceitos fundamentais descumpridos o artigo 1º, III (dignidade da pessoa humana), o artigo 5º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade), e os artigos 6º e 196 (direito à saúde), todos da Constituição Federal, e, como ato do poder público causador da lesão, os artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal.
O que se pretende, em síntese, é que o Supremo Tribunal Federal, mediante interpretação conforme à Constituição, estenda ao aborto do feto anencéfalo as excludentes de criminalidade do aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vida da gestante) e do aborto no caso de gravidez resultante do crime de estupro, ambas essas excludentes de criminalidade inscritas no art. 128 do Código Penal.


O STF não decidiu o mérito da argüição que foi proposta. Não avancemos precipitadamente conclusões


O ministro relator, no início das férias forenses de julho, concedeu, em decisão monocrática, a medida liminar. Essa decisão deveria ser submetida ao referendo do tribunal, por isso que a lei 9.882, de 1999, artigo 5º, estabelece que "o Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental", acrescentando o seu parágrafo 1º que, "em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou, ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, "ad referendum" do tribunal pleno".
O relator levou a decisão ao referendo do tribunal, no início do mês de agosto. Por proposta do presidente da corte, entretanto, decidiu-se que a questão seria julgada, no seu mérito, em breves dias.
Na sessão do dia 20 de outubro a questão foi posta em mesa para que o Supremo decidisse se seria cabível ou não a argüição, na qual, não custa repetir, pretende-se que o STF, mediante interpretação conforme, estenda as excludentes de criminalidade do art. 128 do Código Penal ao aborto do feto anencéfalo.
O relator votou pelo cabimento da argüição. Em seguida, pediu vista dos autos o ministro Carlos Britto, certamente porque em dúvida sobre o cabimento da ação. Adiado o julgamento preliminar e não ainda julgamento do mérito, o ministro Eros Grau propôs que apreciasse o tribunal a liminar concedida pelo relator. É dizer, passou a corte à apreciação, apenas, da liminar, depois de ouvir, em sustentação oral, o ilustre advogado da autora, o professor Luiz Roberto Barroso. Acentuei, no meu voto, que acolhia a proposta do ministro Eros Grau.
É que se tem, na hipótese, anotei, liminar satisfativa, concedida há mais de três meses, com eficácia "erga omnes", num caso em que há dúvida quanto ao cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. E indaguei: quantos e quantos abortos já teriam sido e estariam sendo feitos, de anencéfalos e outros, com base na liminar? E se amanhã o Supremo Tribunal decidir pelo não cabimento da argüição? Ficaríamos, acrescentei, em situação no mínimo desconfortável.
Argumentei, mais, no sentido de que não há, no caso, risco de morte da gestante. O risco, na verdade, segundo alguns -e temos em mãos dezenas de pareceres e manifestações de juristas, de entidades de classe, de médicos, de entidades religiosas, opinando de um lado e de outro- corre contra a vida.
É o caso, portanto, de se aguardar, até por cautela, o julgamento do mérito da questão.
Ficou o tribunal, ao decidir, por sete votos a quatro, pela revogação da liminar, apenas na inconveniência de sua manutenção.
O Supremo Tribunal Federal, portanto, não decidiu o mérito da argüição de descumprimento de preceito fundamental que foi proposta. Esse mérito será decidido, no caso de o tribunal entender cabível a citada argüição.
Não avancemos, pois, precipitadamente, conclusões.

Carlos Velloso, 68, professor emérito da PUC-MG e da UnB, é ministro do Supremo Tribunal Federal, corte que presidiu de 1999 a 2001.


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