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São Paulo, quinta-feira, 04 de dezembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A página perdida

RIO DE JANEIRO - Cenário: o mais imponente dos anfiteatros da Sorbonne. Personagem principal: um professor emérito de semiótica, vastos cabelos brancos, óculos de fundo de garrafa, um cachecol vermelho protegendo a garganta de onde saía uma voz austera e sapiente.
Lia um extenso calhamaço, calculei umas 20, 25 laudas em espaço dois, produto de alguma Olivetti dos tempos de D'Annunzio, se é que nos tempos de D'Annunzio havia Olivettis.
Apesar do tom solene e definitivo, o auditório parecia desinteressado -e desinteressado ficou até a maldita, a fatídica página 12. O professor remexeu o calhamaço diversas vezes, procurando a página fatal, justo no trecho em que fazia uma citação de Walter Benjamim, e não a encontrava. Revirou diversas vezes os papéis, mudou de óculos para melhor pesquisar a ordem das páginas, tossiu, bebeu um gole de água, trocou novamente de óculos e bebeu mais um gole de água.
O auditório mudo, respeitando a aflição do orador, torcendo para que ele achasse o raio daquela página. O moderador tentou ajudá-lo, sugeriu que a papelada fosse organizada numericamente, a platéia esperaria, na esperança de beber a verdade interrompida.
Finalmente, trocados os óculos diversas vezes e bebidos outros tantos goles de água Evian, o orador deu-se por vencido e declarou a página perdida. Retomaria a leitura do texto na página seguinte, embora custasse a ele e ao auditório um esforço suplementar de concentração para que não se perdesse o fio da meada.
Hora e meia depois, deu por finda sua participação no colóquio e o moderador franqueou a palavra aos assistentes. Que fizessem perguntas, pedissem esclarecimentos.
Uma senhora magra, parecida com a Katherine Hepburn, perguntou qual a conclusão a que o professor pretendia ter levado o auditório.
A confissão foi sincera: a resposta a todas as questões estava na página perdida.


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