São Paulo, quarta-feira, 05 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CÁSSIO STARLING CARLOS

O Fome-Zero do audiovisual

A entrada em vigor, nesta semana, das novas regras da chamada cota de tela -tempo definido pelo governo de exibição compulsória de filmes brasileiros- traz de novo à tona a questão da regulamentação, foco da maior parte das críticas dirigidas ao projeto da Ancinav.
A despeito das críticas aos pontos considerados polêmicos do projeto de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual, o fato de o governo criar mecanismos de estímulo à produção, à sua diversificação e estabelecer critérios para garantir a exibição não tem, em si, nada de negativo.
Afinal, os países com uma cinematografia significativa se impuseram também graças a mecanismos protecionistas, sobretudo à dominação das máquinas de guerra hollywoodianas.
É necessário, porém, indagar se o fato de impor condições de visibilidade para o produto nacional se fará acompanhar do interesse do espectador pela produção audiovisual brasileira.
A relação entre os números da cota de tela e de bilheteria no ano passado invalida essa necessidade lógica. Em 2004, todas as salas foram obrigadas a reservar, no mínimo, 63 dias para a exibição de produções nacionais, o dobro do determinado em 2003.
Já nas bilheterias, entre 2003 e 2004 houve um recuo de 20% para os filmes brasileiros. Um raciocínio simplificado sugere que por trás dessa redução pode estar não a quantidade, mas a qualidade da oferta.
Também a experiência histórica indica que o automatismo da obrigatoriedade pode resultar em fracasso. Basta lembrar a exibição compulsória de filmes brasileiros, vigente nos anos 70, então cumprida mecanicamente, mas insuficiente para despertar qualidade e diversidade.
Portanto, a cota de tela apenas não basta. Falta uma política de estímulo à produção, mas que não se limite ao âmbito financeiro. A cultura audiovisual de um país não se desenvolve por decreto. As boas condições incluem formação qualificada -o que significa não só de artistas, técnicos e roteiristas, mas sobretudo do público.
O que falta mesmo é uma ampliação de exigência estética, seja de quem cria, seja de quem consome. "Olga" e os filmes de Xuxa, por exemplo, são direcionados para um público para o qual ir ao cinema não chega a ser um hábito de consumo.
O contra-exemplo é "Meu Tio Matou um Cara", cujo prazer narrativo contamina, sim, o público cinéfilo, mas muito mais aquele que costuma dizer na saída: "É tão bom que nem parece filme brasileiro".
Pois uma cinematografia forte se faz mais à custa de filmes de pequenos e médios -os cinemas da Argentina e do Irã são os exemplos mais recentes, goste-se ou não deles.
Se precisarmos de, a cada ano, clonar Hollywood para validar os "avanço e conquistas do cinema brasileiro", a imagem que fazemos do país -e que passa pelas imagens que podemos ver no cinema, na TV e no audiovisual em geral- não passará de miragem.


Cássio Starling Carlos é editor da Ilustrada. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Antonio Delfim Netto, que escreve às quartas-feiras nesta coluna.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Cidade fantasma
Próximo Texto: Frases
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.