São Paulo, terça, 5 de janeiro de 1999

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Fidelidade partidária e concentração de poder


A obsessão negativa com a chamada infidelidade partidária tem como meta a busca de maior docilidade parlamentar


RENATO LESSA

O tema da infidelidade partidária, seja por indução malévola ou por preguiça mental, evoca nos transeuntes imagens bizarras e lombrosianas de deputados em permanente estado de negociata. Parlamentares periféricos, com fisionomias assimétricas, são exibidos em horário nobre, e seus pequenos truques e espertezas são tomados como sinais de decadência institucional. É certo que o fenômeno, isolado em suas proporções reais, nada tem de elogiável. Mas é possível considerá-lo sob um ângulo, digamos, mais respeitável.
Ao contrário do que se imagina, infidelidade partidária não é característica marginal no cenário legislativo brasileiro, algo confinado aos satanizados partidos de aluguel (desde já, proponho um conceito impressionista e preciso para tal fenômeno: "partido de aluguel" é o pequeno partido dos outros). Ao contrário, a migração de deputados é extremamente funcional para o predomínio parlamentar do PFL e do PSDB no processo legislativo.
PFL e PSDB iniciaram a legislatura de 1994 com, respectivamente, 89 e 62 deputados. Ao final dela, em 1998, as duas legendas detinham, pela ordem, 110 e 95 representantes na Câmara. Ou seja: PFL e PSDB, juntos, promoveram a infidelidade de pelo menos 54 deputados, mais de 10% da Câmara.
Supor que tal processo tenha ocorrido de modo disperso e inadvertido equivale a um exercício de autolobotomização. Sejamos mais generosos com nossas capacidades cognitivas: a migração foi e é uma estratégia de crescimento político, sobretudo em um cenário de fragmentação alta, que beneficia os grandes partidos.
Sendo assim, é difícil acreditar na autenticidade de líderes -parlamentares e supraparlamentares- desses partidos quando, de modo grave e afetado, exigem assepsia institucional. Em outras palavras, parece-me tolice tratar do tema mobilizando apoios em considerações de ordem doutrinária.
Do que se trata, então? O fim da infidelidade -ou, em notação menos afetada, o fim da troca de partidos entre eleições- é um dos itens nobres da chamada "reforma política". Faz parte de um saudável desencanto com o mundo saber que reformas da política, mais do que "aperfeiçoar as instituições", alteram a distribuição de poder político. É sob tal ângulo, que muitos poderão julgar excessivamente cético ou cínico, que propostas de reforma institucional devem ser avaliadas.
A obsessão negativa com a chamada infidelidade partidária tem como meta a busca de maior docilidade parlamentar. Em um cenário no qual o Executivo dispõe de atribuições legislativas fortes -precedência para seus projetos e, "ça va sans dire", medidas provisórias-, o controle do comportamento dos parlamentares indica uma opção por eliminar as possibilidades de risco.
Na legislatura que está a findar, mesmo contando com forte maioria, o governo teve grandes dificuldades de administração política. Foi até mesmo obrigado a incorrer na odiosa e abjeta prática da negociação. Ameaçar parlamentares indisciplinados e voláteis com punições e, no limite, perda de mandato pode soar bem para ouvidos apegados à simetria e à disciplina. É necessário, no entanto, considerar o estado atual da distribuição de poder no interior do processo legislativo para avaliar o possível impacto de medidas legais de indução à disciplina partidária.
Disciplina partidária imposta -associada à utilização infrene de medidas provisórias e temperada com a obsessão de mudar o país via reforma constitucional- sugere um quadro de concentração de poder político. A exibição (pouco inteligente ou mal-intencionada, não importa) do folclórico e do exagerado é uma cortina de fumaça que pode estar encobrindo processos mais graves para a democracia no país. A opção por não correr nenhum risco é, com frequência, liberticida.


Renato Lessa, 44, cientista político, é diretor-executivo do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), professor titular da Universidade Federal Fluminense e secretário-executivo da Associação Brasileira de Ciência Política.




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