São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

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CENSURA RELIGIOSA

A publicação de charges retratando o profeta islâmico Muhammad originou ruidosa onda de ataques à liberdade de expressão na Europa que desafia fundamentos da democracia republicana.
Apontando ofensa ao princípio que proíbe a idolatria e, em conseqüência, a representação da imagem de seu profeta máximo, muçulmanos em diversos países defendem a censura às charges, editadas em setembro por um jornal da Dinamarca e reproduzidas por outras publicações européias nos últimos dias.
Em razão dos protestos, o editor-executivo do jornal "France Soir", que publicou os desenhos, terminou demitido, enquanto a imprensa britânica preferiu não reproduzi-los.
Ainda que algumas das charges sejam de gosto duvidoso, não se pode acatar argumentos que levem à interdição prévia de imagens ou temas sob a justificativa de que ferem suscetibilidades desta ou daquela religião.
Na tradição iluminista, há um elenco de valores que aspiram à universalidade. Entre eles estão o direito à livre expressão de idéias e o direito à liberdade de culto. Este último é concebido como uma garantia que as Constituições modernas asseguram ao indivíduo, e não aos sistemas de crença. Sempre que a liberdade individual de culto estiver ameaçada, o Estado deve ser chamado a intervir.
Ora, no caso, não há indício de que as charges constranjam a prática religiosa dos muçulmanos naqueles países europeus. O que os desenhos transmitem são críticas -que, por se filiarem ao gênero humorístico, tendem ao exagero mordaz- ao que seus autores consideram um uso desvirtuado do islamismo por terroristas adeptos de ataques suicidas.
Para tanto, os cartunistas se valeram da figuração do profeta, o que, por tratar-se de interdito religioso no islamismo, ofendeu parcela dos fiéis daquela religião. Ou seja, o conflito se dá entre um direito que aspira à universalidade, de um lado, e uma ofensa que apenas ganha sentido dentro de um sistema religioso, de outro. Não há dúvida de que, nesse caso, as democracias devem optar pela defesa do valor mais importante -a liberdade de expressão-, mesmo que isso signifique contrariar uma comunidade religiosa.
O caso das charges evoca a sentença de morte proclamada contra o escritor Salman Rushdie como punição por sua narrativa ficcional em torno do profeta Muhammad. A "fatwa" contra Rushdie proveio da "justiça divina" do aiatolá Khomeini, então a principal liderança do Irã, que viu blasfêmia contra o islamismo na obra do autor anglo-indiano.
Não há exemplo melhor para exprimir o contraste radical que surge da comparação entre o sistema legal vigente no Irã e o das modernas democracias ocidentais. A revolução de Khomeini trouxe a religião de volta para o centro do poder temporal. A iluminista a expulsou de lá.


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