São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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Entre o paletó e a moradia

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Foi um almoço agradável, mas cheio de ironias. A Joaninha, apesar dos seus 70 e tantos anos (ela vai ficar furiosa com este artigo, pois insiste ter 64...), ainda guarda seu belo senso de humor, cultivado desde os tempos de escola.
O Mathias é do tipo "serião". Carrega na face as marcas do agricultor sofredor, que trabalha de sol a sol. Mas, no fundo, é irônico. Ele esconde a ironia por trás de uma fleuma pretensamente britânica. Logo quem... Sir Mathias...
A Joaninha lembrou que o Superior Tribunal de Justiça, esse mesmo que acolheu a liminar do Supremo Tribunal Federal que concede R$ 3.000 para seus pares a título de auxílio-moradia, em 1998 aprovou uma ajuda de R$ 2.059 mensais para garantir o decoro no vestir dos seus mil funcionários. É o chamado "auxílio-paletó".
Além de detestar o nome, por ela considerado indecoroso, a Joaninha somou, subtraiu e dividiu para concluir que R$ 2.059 dá para cada funcionário comprar uns dez ternos por mês, o que permitiria aos magazines de Brasília vender 120 mil unidades por ano (!), revolucionando o comércio local.
Muito mordaz essa comparação. Mas tudo bem. Ela é assim mesmo. Calcula tudo. E... (que ninguém nos ouça) ... É miserável... É daquelas que não assina a Folha porque lê a da vizinha...
Perdoe-me o leitor, ter desviado o assunto. Afinal, hoje é Carnaval. É dia de descontração.
Mas o almoço ficou tenso quando o Mathias mencionou o fato de os altos Poderes da República terem fixado para os que mais ganham na administração pública um teto que não é teto. Como à importância de R$ 11.500 os funcionários e parlamentares aposentados poderão adicionar os benefícios que recebem e como muitos recebem benefícios que podem chegar a R$ 11.500, na prática esses privilegiados acabaram ficando com R$ 23 mil -um "teto dúplex", apelidou a Joaninha.
Entre o auxílio-paletó, o auxílio-moradia e o teto dúplex, é difícil saber qual deles é mais afrontoso à grande maioria de bons funcionários que ganha, em média, R$ 1.500.
Felizmente, alguns magistrados de bom senso renunciaram à benesse da moradia; o presidente da República abdicou do próprio teto; e, quem sabe, os funcionários do STJ se animem a devolver os milhares de paletós calculados pela Joaninha... Que, em seguida, desabafou:
- Lecionei 40 anos; nunca me deram nem sequer um guarda-pó para me proteger do giz; comprei a minha casa pelo BNH (veja, ela é do tempo do BNH...!); recebo R$ 330 como aposentada (mentira, pois ganha mais de R$ 900); e, aos 64 anos de idade, sou obrigada a engolir esse pacote indigesto -, ao que arrematei, para aliviar o clima:
- Hoje é dia de espairecer. Dia de samba no pé e alegria na cabeça. Afinal de contas, apesar dessas tristes decisões, creia-me que a esperança é o melhor dos remédios.
Tenha pois um bom Carnaval e quem sabe após os festejos o milagre venha a acontecer e os nossos dirigentes venham a acreditar mais no valor do nosso dócil e sofrido povo.


Antonio Ermírio de Moraes escreve aos domingos nesta coluna.


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