São Paulo, quarta-feira, 05 de abril de 2006 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Não-pessoas
ANNA VERONICA MAUTNER
A realidade vem desmentindo essa nossa deliciosa fantasia. Vivemos com coleções de serviçais que queremos a nosso inteiro dispor dia e noite, executando nossos desejos, antecipando nossas atitudes e ações, sempre ali, ao lado, solícitos, apesar de surdos, burros e, especialmente, ignorantes. Essa situação não desejada permite que, "entre pares", se fale à vontade, mesmo quando essas "não-pessoas" estão ao redor. Diante delas, como se não existissem, confessamos nossas falhas, transgressões e até mesmo crimes. Claro que um caseiro Francenildo ou o motorista Francisco Chagas da Costa, no caso atualíssimo, não deveriam, para nosso maior conforto, desconfiar ou se interessar pelo porquê de certas ordens, como a de apagar as luzes externas de uma casa bem vigiada, especialmente quando o chefe está para chegar. Quanta inocência! Mas nós, seja classe média, seja classe alta, vivemos mergulhados de cabeça nessa falsa ilusão. Pois não é que eles -e não só eles mas também todos os prestadores de serviços que nos rodeiam-, por incrível que pareça, prestam uma atenção louca no que ocorre à sua volta? Nada mais humano. Afinal, se o Brasil inteiro espia os "big brothers", por que Francenildo não espiaria o que aqueles "poderosos" faziam numa casa que não é nem lar, nem escritório, nem fábrica, nem oficina? Voltando às nossas ilusões, temos que lembrar que essas "não-pessoas", apesar de tudo, vêm mudando a história do Brasil: motoristas, caseiros e secretárias, há algumas décadas, nos ajudam a desvendar maracutaias altamente lesivas. A ilusão que alimentamos sobre a fidelidade dos serviçais, contudo, é tão forte que, apesar dos fatos desmentirem, não aprendemos. Como imaginar que o motorista que serve para carregar malas cheias de dinheiro não tem a menor vontade de saber o que está fazendo? No que se baseava Valério, o grande Valério, para imaginar que Karina iria protegê-lo de tudo e de todos para todo o sempre? Esse comportamento nacional desdenhoso não é novo e não está presente só em Brasília. Cada um de nós, se fizer um bom exame de consciência, se parar para pensar, perceberá também como, além dos porteiros e motoristas, temos todas as auxiliares domésticas transformadas em corpos invisíveis e transparentes para o nosso maior conforto. Elas fazem o serviço, a gente fala e faz o que bem entende, como se não estivessem ao redor. São verdadeiros milagres ao vivo a nos servir e atender. Tiram o pó, cozinham, abrem portas, dirigem automóveis, arrumam malas. Faço uma ressalva: as "não-pessoas" viram "pessoas" para nos lesar nas contas de gasolina, no dinheiro do supermercado. Esses seriam os únicos objetos de desejo dessas despersonalizadas pessoas. Querem desfrutar nossos bens, sem ter interesse por nossa história. Que mentira, que lorota boa! Não é possível que se chegue ao ponto de deixar Viagra e camisinhas usadas para que caseiros limpem, no dia seguinte ao das farras secretas, imaginando que eles, nem assim, queiram saber "como" e "onde". Humilhar em relações interpessoais nunca dá bom resultado. Tratar pessoas de nosso convívio como "não-pessoas" humilha e traz em seu bojo o revide. Com o perdão do palpite que ninguém pediu, garanto que é mais tolerável pedir para alguém sair da sala do que falar o que ao outro não é suposto escutar. Aliás, num país que tanto se fala sobre excluídos, parece que essa categoria de exclusão não vem sendo considerada. Que pena! É muito fácil, verdadeiramente senso comum, dizer que isso tudo é herança do regime escravocrata que dominou o país até 118 anos atrás, só que não resolve nem operacionaliza mudanças. Poucas vezes conhecer a causa ou a origem é suficiente. Já é corriqueiro passar sem olhar para pessoas dormindo ou descansando nas ruas. A relação íntima do mandante com o mandado, quando contém desdém, é crime, ou pecado, se preferirem, mas sempre muito forte. Quando, estando a um metro de distância, uma pessoa não é percebida, ela está sendo roubada de sua essência e de sua alma (nos velhos tempos, dizia-se que negro não tinha alma!). Por ser esse jeito de atuar tão difundido e tão pouco comentado, peço somente atenção e reflexão. Quem sabe, o resto virá por si. Da minha parte, que fique só a sugestão de atenção e reflexão. Anna Veronica Mautner, psicanalista, é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e colunista mensal do Folha Equilíbrio. É autora de "Crônicas Científicas" (Escuta). Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Ferréz: Antropo(hip-hop)logia Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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