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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deve-se proibir a venda de armas no país?
SIM
Imperativo de saúde pública
MIGUEL REALE JÚNIOR
Há interesses econômicos em
ambas as posições. O lobby das fábricas de armas é evidente no sentido da
permissão da comercialização e controle apenas do porte. Mais sutil é o interesse econômico que está por trás da proibição da comercialização.
O Brasil exporta aos EUA considerável número de revólveres, e o nosso produto ocupa parcela significativa do
mercado. Os EUA exportam número
bem reduzido de armas para o Brasil.
No entanto, se for proibida a comercialização e, logo, a importação, em face da
reciprocidade, podem as fábricas americanas exigir que seja proibida também
a importação pelos EUA, voltando as fabricantes americanas a ocupar o mercado perdido. Às empresas de segurança
privada interessa, por seu lado, a proibição do comércio de armas, pois, dessa
forma, valoriza-se o seu trabalho, que se
revelaria ainda mais indispensável com
a sociedade desarmada.
No plano dos interesses econômicos a
disputa está zerada. Cabe saber, então,
se, independentemente desse aspecto
subalterno diante da preservação da vida, é necessário e conveniente proibir o
comércio de armas para civis.
A questão deve ser vista no contexto
em que se dá a violência no Brasil. Em
breve síntese, pode-se afirmar que as características dessa violência, que atinge
o número estrondoso de 4.000 homicídios por mês, são: a banalização, a vitimização de jovens, a desorganização social dos bairros periféricos de maior incidência de criminalidade, a utilização
de armas permitidas, o elevado número
de furtos de armas de civis e de membros de empresas de segurança.
Ora, a banalização indica que se mata,
no impulso, por coisa nenhuma, por
motivo fútil, e dentro ou nas proximidades de bares, sendo homicida e vítima
normalmente conhecidos. Os jovens
são as vítimas e os autores da violência:
56% dos moços entre 15 e 24 anos morrem assassinados, sendo que, destes,
74% são mortos por arma de fogo.
A desorganização social está presente
na vida árdua da periferia das cidades
de mais de 500 mil habitantes, sem serviços públicos essenciais, sem a presença do Estado, sem Justiça e sem polícia,
sujeita a população a toda exploração,
da imobiliária à do crime organizado.
Nesse universo, desde adolescente cabe
a cada qual impor e defender os seus interesses, no uso arbitrário da violência.
Nesse salve-se-quem-puder, a pequena
rusga impulsiona reações que o revólver à mão transforma em agressividade
fatal. Os homicídios são, em geral, praticados por arma de fogo de calibre permitido, fabricadas no Brasil -fato relevante ao qual se soma a circunstância de
que em São Paulo, por exemplo, 11 mil
armas lícitas em mãos de civis e de
agentes de segurança privada são anualmente furtadas ou roubadas e vêm a alimentar o mercado clandestino.
Nesse quadro de barbárie, dada a ausência do Estado, com o recurso indiscriminado e constante à violência, por
jovens e adultos, o outro passa a ser supérfluo, devendo-se examinar se deve-se permitir o acesso à arma de fogo pelos civis. Não é difícil verificar que a posse de uma arma, com porte ou sem,
constitui um agente facilitador da resposta agressiva aos percalços e conflitos
do dia-a-dia, sendo uma das razões do
elevado número de homicídios, uma
guerra interna a que a sociedade, atemorizada, assiste diariamente. Assim,
impedir a disseminação das armas no
Brasil, pela proibição do comércio para
civis e maior controle do seu uso por
parte de empresas privadas, vem a ser
uma questão básica de saúde pública.
Nem se argumente que, para defesa
pessoal, deve-se permitir que cada cidadão prestante tenha em casa uma arma,
pois os números indicam que é esta
uma ilusão, já que o possuidor de arma,
em um roubo, tem mais chance de ser
morto do que o desarmado. Para usar
uma arma, especialmente em situações
de confronto, é preciso frieza e conhecimento, o que em geral não sucede com
as vítimas dos roubos.
O controle para concessão de porte já
é rigoroso, graças à lei 9.437/97 e à disciplina da matéria em alguns Estados,
mas de pouco adiantou para impedir a
redução do mercado clandestino de armas permitidas. Só a proibição da comercialização teria o condão de reduzir
a proliferação de armas, excetuada a
compra de armas de cano longo para
pessoas que habitem lugar ermo.
Não se imagine que basta essa medida. Outras são necessárias para diminuir a catástrofe dos homicídios e a banalização da vida, seja por programas
sociais na periferia, seja por plantões sociais nas delegacias, seja pela proibição
de venda de bebidas alcoólicas a partir
de determinada hora em bares e botecos, bem como maior controle sobre o
preparo dos empregados das empresas
de segurança privada e a rápida destruição das armas apreendidas pela polícia,
para não voltarem a circular.
A proibição de comercialização põe-se, contudo, no cenário brasileiro como
um imperativo em defesa das 4.000 potenciais vítimas de homicídio por arma
de fogo, que poderão vir a morrer a cada
mês. Parece-me, então, que a escolha do
caminho a seguir não é difícil.
Miguel Reale Júnior, 59, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro da Justiça (governo Fernando Henrique) e secretário da Administração (governo Covas) e da
Segurança Pública (governo Montoro) do Estado
de São Paulo.
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