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São Paulo, sábado, 05 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve-se proibir a venda de armas no país?

SIM

Imperativo de saúde pública

MIGUEL REALE JÚNIOR

Há interesses econômicos em ambas as posições. O lobby das fábricas de armas é evidente no sentido da permissão da comercialização e controle apenas do porte. Mais sutil é o interesse econômico que está por trás da proibição da comercialização.
O Brasil exporta aos EUA considerável número de revólveres, e o nosso produto ocupa parcela significativa do mercado. Os EUA exportam número bem reduzido de armas para o Brasil. No entanto, se for proibida a comercialização e, logo, a importação, em face da reciprocidade, podem as fábricas americanas exigir que seja proibida também a importação pelos EUA, voltando as fabricantes americanas a ocupar o mercado perdido. Às empresas de segurança privada interessa, por seu lado, a proibição do comércio de armas, pois, dessa forma, valoriza-se o seu trabalho, que se revelaria ainda mais indispensável com a sociedade desarmada.
No plano dos interesses econômicos a disputa está zerada. Cabe saber, então, se, independentemente desse aspecto subalterno diante da preservação da vida, é necessário e conveniente proibir o comércio de armas para civis.
A questão deve ser vista no contexto em que se dá a violência no Brasil. Em breve síntese, pode-se afirmar que as características dessa violência, que atinge o número estrondoso de 4.000 homicídios por mês, são: a banalização, a vitimização de jovens, a desorganização social dos bairros periféricos de maior incidência de criminalidade, a utilização de armas permitidas, o elevado número de furtos de armas de civis e de membros de empresas de segurança.
Ora, a banalização indica que se mata, no impulso, por coisa nenhuma, por motivo fútil, e dentro ou nas proximidades de bares, sendo homicida e vítima normalmente conhecidos. Os jovens são as vítimas e os autores da violência: 56% dos moços entre 15 e 24 anos morrem assassinados, sendo que, destes, 74% são mortos por arma de fogo.
A desorganização social está presente na vida árdua da periferia das cidades de mais de 500 mil habitantes, sem serviços públicos essenciais, sem a presença do Estado, sem Justiça e sem polícia, sujeita a população a toda exploração, da imobiliária à do crime organizado. Nesse universo, desde adolescente cabe a cada qual impor e defender os seus interesses, no uso arbitrário da violência. Nesse salve-se-quem-puder, a pequena rusga impulsiona reações que o revólver à mão transforma em agressividade fatal. Os homicídios são, em geral, praticados por arma de fogo de calibre permitido, fabricadas no Brasil -fato relevante ao qual se soma a circunstância de que em São Paulo, por exemplo, 11 mil armas lícitas em mãos de civis e de agentes de segurança privada são anualmente furtadas ou roubadas e vêm a alimentar o mercado clandestino.
Nesse quadro de barbárie, dada a ausência do Estado, com o recurso indiscriminado e constante à violência, por jovens e adultos, o outro passa a ser supérfluo, devendo-se examinar se deve-se permitir o acesso à arma de fogo pelos civis. Não é difícil verificar que a posse de uma arma, com porte ou sem, constitui um agente facilitador da resposta agressiva aos percalços e conflitos do dia-a-dia, sendo uma das razões do elevado número de homicídios, uma guerra interna a que a sociedade, atemorizada, assiste diariamente. Assim, impedir a disseminação das armas no Brasil, pela proibição do comércio para civis e maior controle do seu uso por parte de empresas privadas, vem a ser uma questão básica de saúde pública.
Nem se argumente que, para defesa pessoal, deve-se permitir que cada cidadão prestante tenha em casa uma arma, pois os números indicam que é esta uma ilusão, já que o possuidor de arma, em um roubo, tem mais chance de ser morto do que o desarmado. Para usar uma arma, especialmente em situações de confronto, é preciso frieza e conhecimento, o que em geral não sucede com as vítimas dos roubos.
O controle para concessão de porte já é rigoroso, graças à lei 9.437/97 e à disciplina da matéria em alguns Estados, mas de pouco adiantou para impedir a redução do mercado clandestino de armas permitidas. Só a proibição da comercialização teria o condão de reduzir a proliferação de armas, excetuada a compra de armas de cano longo para pessoas que habitem lugar ermo.
Não se imagine que basta essa medida. Outras são necessárias para diminuir a catástrofe dos homicídios e a banalização da vida, seja por programas sociais na periferia, seja por plantões sociais nas delegacias, seja pela proibição de venda de bebidas alcoólicas a partir de determinada hora em bares e botecos, bem como maior controle sobre o preparo dos empregados das empresas de segurança privada e a rápida destruição das armas apreendidas pela polícia, para não voltarem a circular.
A proibição de comercialização põe-se, contudo, no cenário brasileiro como um imperativo em defesa das 4.000 potenciais vítimas de homicídio por arma de fogo, que poderão vir a morrer a cada mês. Parece-me, então, que a escolha do caminho a seguir não é difícil.


Miguel Reale Júnior, 59, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro da Justiça (governo Fernando Henrique) e secretário da Administração (governo Covas) e da Segurança Pública (governo Montoro) do Estado de São Paulo.


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