São Paulo, quinta-feira, 05 de agosto de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Fim das ideologias

Na campanha eleitoral que levou Lula à Presidência -quando a atriz Regina Duarte era estigmatizada por exercer seu direito a ter e a expressar opiniões-, cogitava-se de três riscos implicados na vitória do PT. O primeiro era o de que um governo petista caísse na tentação de praticar demagogia populista, produzindo a volta da inflação, o descontrole das contas do Estado e mais crise social.
Esse foi o percurso habitual nas poucas vezes em que forças de esquerda chegaram ao poder central em países latino-americanos. Agora mesmo, na vizinha Venezuela, o presidente Hugo Chávez repete o roteiro, ao preço de dividir o país em duas metades irreconciliáveis, prevalecendo-se de um impasse que ele mesmo insuflou, auxiliado pela intransigência golpista da frente de oposição a seu regime.
Mas esse risco, que parecia o mais presente no caso brasileiro, foi afastado desde o início da gestão pela política econômica do governo Lula. Sem que muitos dos eleitores se dessem conta e para surpresa das bases do partido, a cúpula do PT se mostrou muito mais comprometida do que se imaginava com os fundamentos da economia de mercado e com o receituário liberal para fazê-la funcionar.
Restavam outros dois riscos, um deles vislumbrado em ambientes de esquerda, o outro brandido pela direita ainda temerosa quanto ao que esperar de uma administração petista. Na esquerda, imagina-se que as concessões para eleger Lula e mantê-lo no poder diluiriam o sentido de sua vitória eleitoral e mutilariam a "missão" histórica do partido de fazer mudanças.
Na direita, além da ameaça populista, receava-se que o know-how leninista dos dirigentes do PT os habilitasse a se incrustar no Estado após a conquista de sua chefia. Temia-se que o partido viesse a "aparelhar" o Estado, substituindo nosso velho patrimonialismo político por uma nova variante, sindical-partidária, do mesmo fenômeno -que Raimundo Faoro situou na origem da formação brasileira.
Essas duas possibilidades não se excluíam. Num caso típico de ironia da História, o tempo demonstrou que elas poderiam combinar-se para formar o cerne do que está sendo o governo Lula. O pressuposto é uma política econômica ortodoxa, que satisfaça o mercado financeiro, mantenha a ciranda entre juros e dívida e garanta a simpatia de grandes financiadores de campanhas eleitorais.
O noticiário recente expôs vários episódios, de diferentes dimensões, a sugerir que o aparelhamento do Estado segue em ritmo acelerado. Ele é feito em nome de uma antiga retórica, abandonada há muito para efeitos reais, mas que ainda rende dividendos de imagem: este governo é diferente dos demais (em quê?), é preciso protegê-lo dos ataques da direita (como, se a direita em peso o apóia?) etc.
O Brasil já havia gerado mais essa peculiaridade: um partido socialista que em poucos anos aderiu à mentalidade liberal sem passar pelas lentas etapas intermediárias dessa evolução à européia. Produz agora um partido que se comporta como se ainda fosse uma facção de esquerda, voltada, porém, a objetivos que nem são de direita, mas se resumem cada vez mais à mera conservação do poder.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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