São Paulo, quinta-feira, 05 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Universidade e democracia

ALFREDO BOSI, HERNAN CHAIMOVICH e JOÃO STEINER

As universidades públicas brasileiras são sacudidas periodicamente por greves de docentes, funcionários ou estudantes. Cada greve tem um caráter único, que depende da história dos movimentos anteriores e do entorno político, social e econômico do momento. A greve nas universidades públicas paulistas neste ano se caracterizou pela pouca participação de docentes, alunos e funcionários e pelo uso, mais uma vez, da violência por parte de grupos pouco representativos -felizmente- de funcionários e estudantes.
A violência se expressou com mais clareza nos piquetes autoritários que impediram o ingresso das pessoas na reitoria, no edifício da antiga reitoria e na prefeitura do campus da USP em São Paulo, num claro desrespeito a princípios elementares e universalmente aceitos da democracia. Piquetes igualmente violentos foram usados como forma de intimidação nos campi de Piracicaba, São Carlos e Ribeirão Preto. As reitorias da Unicamp e da Unesp foram invadidas e parcialmente depredadas. O ápice dessas demonstrações de absoluto desrespeito à democracia teve como palco o plenário da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, quando uma turba desceu das galerias e chegou a conflito físico com deputados estaduais.


Depois de uma greve de 60 dias numa universidade pública como a USP, não existem vencedores, apenas vencidos


Como é possível que, na universidade, onde a reflexão racional e o diálogo devem imperar, uma "racionalidade" baseada no confronto e na violência seja utilizada como instrumento de pressão numa negociação salarial? Se isso não pode ser aceito em nenhuma esfera da vida social, menos ainda o pode ser na universidade, cuja missão precípua é formar cidadãos com competências específicas e que no futuro desempenharão papel de relevância e liderança na sociedade, com todas as responsabilidades éticas e sociais que tais posições exigem. Devemo-nos perguntar que cidadãos formaremos se deixarmos que nossos alunos considerem esse tipo de atuação e negociação "normal".
Agora, quando grevistas e não-grevistas sentem o alívio do fim do "movimento" e busca-se retomar as atividades interrompidas ou superar o que foi irremediavelmente perdido, devemos compreender que, depois de uma greve de 60 dias numa universidade pública como a USP, não existem vencedores, apenas vencidos.
Um exemplo lamentável de perda é conseqüência da paralisação das atividades do IEA (Instituto de Estudos Avançados da USP), resultado dos piquetes que impediram o acesso às suas instalações durante dois meses.
Criado em 1986, o IEA é um órgão de integração destinado à pesquisa e à discussão, de forma abrangente e interdisciplinar, das questões fundamentais da ciência e da cultura. O instituto tem também a atribuição de realizar, junto com segmentos representativos da sociedade, estudos sobre instituições e políticas públicas (nacionais, estaduais, municipais e até supranacionais). Destacam-se os trabalhos sobre políticas de desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da educação e da cultura, bem como sobre o uso social do conhecimento. Pela natureza de suas atividades, o IEA desempenha papel significativo no incremento do intercâmbio científico e cultural entre a USP e instituições brasileiras e estrangeiras.
Todas essas atividades do IEA foram interrompidas, com prejuízo inclusive para o planejamento de futuras iniciativas. Esse corte abrupto e longo de relações com pessoas e instituições do Brasil e do exterior afetou sobremaneira a reflexão interdisciplinar desenvolvida pelo instituto, dependente em muito do intercâmbio de informações e idéias.
Uma das atividades canceladas pelo IEA no período foi uma conferência de dom Paulo Evaristo cardeal Arns sobre "A Paz entre as Religiões". Esse cancelamento pode ser tomado como fato emblemático, totalmente coerente com a perversa racionalidade da violência: impedindo a reflexão sobre a paz, os métodos utilizados na greve contribuíram com o culto à violência.
Práticas como invasões de ambientes universitários por pessoas encapuzadas -comuns em contextos fascistas-, bem como agressões e atitudes desrespeitosas para com autoridades legitimamente constituídas devem ser pronta e energicamente condenadas.
Em nome do Conselho Deliberativo do IEA, vimos a público expressar nosso repúdio à transgressão de valores que simbolizam a convivência universitária, entre os quais se incluem o profundo respeito pelas opiniões alheias e a defesa intransigente dos valores democráticos.

Alfredo Bosi, 67, professor do Departamento de Letras Clássicas da FFLCH/USP, é vice-diretor do IEA (Instituto de Estudos Avançados da USP). Hernan Chaimovich, 64, é diretor do Instituto de Química da USP. João Steiner, 54, professor do Departamento de Astronomia do IAG/USP, é diretor do IEA. Os autores são membros do Conselho Deliberativo do instituto.


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