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São Paulo, sexta-feira, 05 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma ponte entre dois mundos

WALTER BELIK

Nenhum balanço que se faça destes primeiros oito meses de implantação do Programa Fome Zero estará completo se não atentar para uma conquista estratégica consolidada no período: uma nova agenda foi incorporada à vida nacional.
Hoje, qualquer cidadão, entidade, empresa ou instituição que pretenda ter uma atuação social sabe que existe uma prioridade fixada pelo Estado brasileiro. E, mais do que isso, tem um repertório de iniciativas e parcerias a escolher. Combater a fome deixou de ser um compromisso unilateral entre governo e excluídos para se tornar uma repactuação da sociedade consigo mesma.
Não é pouco. Tomemos outras sociedades extremadas no mundo e o nosso país, infelizmente, encontra-se entre as piores do planeta. Veremos que a construção de um idioma único para o entendimento dos desafios sociais não é e nunca foi uma tarefa fácil. O Fome Zero conseguiu a proeza de colocar elites, intelectuais, lideranças políticas e todas as forças sociais em torno de uma mesa imaginária nos últimos meses. Dessa conversa pública emergiram conclusões importantes traduzidas numa língua comum -a da urgência diante da aberração que permite a um campeão mundial em exportações de carne e soja (desempenho inédito, que levou o Brasil a superar os EUA e a Austrália neste ano) conviver com a insegurança alimentar de um terço de seu povo.


O Fome Zero conseguiu a proeza de colocar todas as forças sociais em torno de uma mesa imaginária nos últimos meses


O Estado brasileiro não tem fôlego político, nem recursos, para reverter esse quadro sozinho. É preciso um conjunto de iniciativas -emergenciais e estruturais- de longa duração, pactuadas com toda a sociedade e combinadas com a retomada do desenvolvimento, para reverter essa herança .
O diagnóstico acima tornou-se quase consensual ao longo dos debates travados em torno do Fome Zero. É preciso que se dê a isso seu verdadeiro nome e peso: trata-se de um valioso cabedal político. Um patrimônio que legitima a ação do governo e sacode a inércia da sociedade. Hoje o combate à fome é uma prioridade estruturada, de abrangência suprapartidária e natureza extra-eleitoral.
Os canais estão montados:o Mesa (Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar) e o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) têm função institucional articuladora. Formulam e coordenam as ações do governo e da sociedade contra a fome. Além disso, existem hoje Conseas locais em 20 Estados e 51 municípios. É um requisito de acesso a várias políticas sociais.
Da mesma forma, temos comitês gestores instalados em cada um dos 1.191 municípios do semi-árido nordestino onde funciona o Programa do Cartão-Alimentação. Organizar a comunidade local é um passaporte para ingresso no programa e só isso já desautoriza a suposição de que se trata de mero assistencialismo conformista.
Do lado da sociedade civil há centenas de entidades atuantes, entre as quais a ONG Apoio Fome Zero, criada pelo empresariado brasileiro no início de julho.
Nessa primeira etapa, "o caminhante fez o caminho ao andar", como diria o poeta. Mas o saldo prático supera todas as expectativas.
O Cartão-Alimentação, carro-chefe de transferência de renda do Fome Zero, atingiu cerca de 800 municípios e mais de 600 mil famílias até agosto. Compare-se com o Bolsa-Alimentação - programa implantado de cima para baixo, pelo Ministério da Saúde, no governo anterior. Em período semelhante, estava presente em 600 municípios e só transferia 123 mil bolsas. É incrível como se consegue avançar mais com democracia e participação popular: o Fome Zero não apenas superou essa marca, como terminará o ano com 1,5 milhão de famílias beneficiadas nas regiões Norte e Nordeste.
O feito é mais notável ainda se considerarmos que foi alcançado por um ministério recém-criado -na verdade, apenas um gabinete de ministro extraordinário com equipe reduzidíssima, encarregada de um amplo programa de segurança alimentar.
Uma linha divisória foi ultrapassada: quebrou-se a inércia e a indiferença diante do precipício que dividia o Brasil em dois mundos -o dos cidadãos e o dos exilados- dentro do próprio país. Agora é lançar novas amarras. E estabelecer uma sólida ponte para o trânsito do comboio que vai conduzir o Brasil a um inadiável destino, o da justiça social.

Walter Belik, 48, professor livre-docente de economia da Unicamp e um dos idealizadores do Programa Fome Zero, é diretor-superintendente da ONG Apoio Fome Zero .


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