|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A ética da hipocrisia
PAULO BETTI
Nos últimos dias, venho sendo submetido a um linchamento moral que deveria preocupar os democratas de nosso país
|
"Nunca conheci quem tivesse levado
porrada. Todos os meus conhecidos têm
sido campeões em tudo."
(Fernando Pessoa, "Poema em Linha Reta")
NOS ÚLTIMOS dias, venho sendo submetido por setores da
mídia e dos meios político, intelectual e artístico a um linchamento
moral que deveria preocupar os democratas sinceros de nosso país. Ele
oculta, sob a forma de protestos indignados contra minha suposta pregação do "fim da ética", uma corrente
de intolerância e de farisaísmo político que se esforça para desqualificar
todos aqueles que se identificam com
o projeto político representado pelo
presidente Lula.
Nesse episódio, tive pouquíssimas
chances de defesa, de demonstrar o
sentido completo da minha frase, extraída por repórteres ávidos e ansiosos à saída de um encontro entre artistas e o presidente: "Não se faz política sem sujar as mãos". "Sem pôr a
mão na merda", de fato acrescentei,
desnecessariamente, para delícia dos
que buscavam munição para a renhida disputa eleitoral deste momento.
Embora a Folha tenha publicado
minha carta aclarando o sentido das
declarações, elas continuam sendo
usadas como "prova" do colapso da
ética entre nós.
Por outra frase, também dita sob o
calor das cobranças, um dos maiores
e mais respeitáveis músicos brasileiros, o maestro Wagner Tiso, vem sofrendo igual massacre.
Os jornais e os jornalistas, os artistas, os intelectuais e os políticos que
protagonizam esses ataques sabem
de quem estão falando. Conhecem
nossas trajetórias. Lembram-se de
mim associado à trajetória do PT,
mas também à memorável batalha de
Betinho "Pela Ética na Política". Sabem que constatar as transgressões
como inevitáveis não é o mesmo que
defendê-las. É lamentável que o sistema político exija um pragmatismo
que suja as mãos, mas é só pelo reconhecimento da existência dessas mazelas que poderemos superá-las.
Todos sabem que falei coisas óbvias, que dispensariam explicações
em outro contexto e momento.
Temos um sistema de financiamento privado de campanhas que a
todos contamina. Com esse sistema,
acaba a fronteira entre o público e o
privado. Quem tiver mais acesso aos
endinheirados arrecada mais, obrigando-se, nos cargos públicos, a responder com reciprocidade.
Enquanto fez campanhas vendendo bonés e estrelinhas, o PT não teve
chances de chegar ao poder. Em
2002, diante do favoritismo de Lula,
os cofres se abriram. E o partido se
envolveu com forças das quais deveria ter guardado distância. Errou por
fazer o que todos sempre fizeram.
Nem por isso devem ser linchados
os que, mesmo condenando esse erro, defendem a reeleição de Lula pela
qualidade do governo que vem fazendo, voltado para os mais pobres, dando-lhes mais poder de compra e alguma chance de ascensão social. Por estar vivenciando a melhora de suas vidas, e não por amoralismo, é que a
maioria dos eleitores o apóiam, segundo as pesquisas.
Nosso sistema político permite a
eleição direta do presidente da República, mas não lhe garante a governabilidade. A profusão de partidos dispersa o voto para a Câmara. Lula teve
52% dos votos em 2002, mas o PT ficou com 17% das cadeiras.
Em busca da maioria, todos os presidentes têm sido obrigados a buscar
acordos e alianças. Acabam dependendo do apoio das forças do atraso
político, que, em troca, pedem cargos,
verbas e mesmo recursos financeiros
com a desculpa de que têm dívidas de
campanha.
O PT caiu nesse antigo alçapão.
Nem por isso se deve negar o direito
da maioria dos eleitores de reeleger o
presidente. Nem por isso é democrático e "ético" o massacre daqueles
que, como eu, declaram o voto acreditando na liberdade e na democracia
que construímos em jornadas de lutas -das quais também participei.
Mais que hipocrisia, há na exploração de minha frase um misto de autoritarismo com oportunismo político.
É autoritária porque reproduz o
germe de todos os sistemas totalitários: desqualificar os que não se alinham com o pensamento dominante.
Para calar, o primeiro passo é desmoralizar. Assim fazem as ditaduras.
É oportunista porque explora minha condição de artista, e as identidades que isso acarreta, para auferir dividendos eleitorais. Há coisa mais suja que isso?
Estamos chegando a um grau preocupante de intolerância. Depois das
eleições, em nome da democracia,
precisamos baixar as armas e recuperar a cordialidade, traço de nossa cultura.
PAULO BETTI , 53, é ator-diretor e produtor. Participou,
entre outros, dos filmes "Lamarca" (1994) e "Guerra de
Canudos" (1997). Foi professor de teatro da Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas).
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: André Sturm: O risco do cinema Índice
|