São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÁRIO MAGALHÃES

O direito de não votar

VINTE ANOS DEPOIS da promulgação da Constituição que dizimou parte expressiva do inventário nefasto da ditadura militar, um dos mais elementares direitos democráticos, o da recusa voluntária ao comparecimento às urnas, será mais uma vez negado hoje aos brasileiros.
Os números exponenciais com que os cartolas das eleições trombeteiam um dos pleitos de maior freqüência do planeta decorrem de constrangimentos legais que impõem o sufrágio aos que, com motivações variadas, não se dispõem a digitar nem mesmo o voto nulo. Se um eleitor pretende protestar contra os vereadores e candidatos da sua cidade, ausentando-se das cabines de votação, não pode: os eleitos baterão no peito a alardear o simulacro de mobilização cívica.
A quem não se identifica com postulante nenhum à prefeitura também não se permite ficar de fora: força-se a presença, conferindo uma legitimidade desproporcional aos vitoriosos, pois compulsória e intimidadora.
O voto obrigatório não é um mal sobrevivente apenas à violência instaurada com o golpe de 1964. A norma autoritária o antecede, nos períodos de democracia formal, mas restritiva, como no veto a dezenas de milhões de eleitores analfabetos.
A imposição dispensa candidatos e partidos de um desafio próprio de regimes democráticos estabelecidos, o de convencer os cidadãos a acorrer às zonas eleitorais.
Na Europa e nos EUA, o índice de abstenção mede o prestígio das instituições e o apelo das pregações. No Brasil, tanto faz o que os políticos têm a dizer: o Estado pune os faltosos.
O país atravessou o século 20 com gerações lutando pelo acesso pleno ao voto, dos tempos do Estado Novo, com o Congresso fechado, aos do regime militar, com o presidente da República aclamado pelo colégio eleitoral. O direito de votar, conquista da democracia, não corresponde, contudo, à obrigação -degeneração historicamente a gosto de coronéis e ditadores.
Para construir um futuro melhor, o Brasil ainda tem muitas contas a acertar com o passado, que dá as caras em leis como a de Imprensa e a da Anistia, ambas, nos termos em que se estabeleceram, expressões de truculência ditatorial.
Deveria também rever o voto obrigatório, mantido pela Carta de 1988. Dos argumentos a seu favor, um dos mais frágeis é o de que, com o fim da faca no peito, menos pessoas escolheriam legisladores e governantes. Ora, este também é um direito: transferir a outros essas decisões.
Hoje à noite, quando os locutores anunciarem sorridentes as marcas superlativas de sufrágios, faltará a informação: os eleitores votaram obrigados, e não, no caso de muitos, porque quiseram.


MÁRIO MAGALHÃES é repórter especial.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Sempre uma festa
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.