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MÁRIO MAGALHÃES
O direito de não votar
VINTE ANOS DEPOIS da promulgação da Constituição
que dizimou parte expressiva do inventário nefasto da ditadura militar, um dos mais elementares direitos democráticos, o da recusa voluntária ao comparecimento às urnas, será mais uma vez negado hoje aos brasileiros.
Os números exponenciais com
que os cartolas das eleições trombeteiam um dos pleitos de maior
freqüência do planeta decorrem de
constrangimentos legais que impõem o sufrágio aos que, com motivações variadas, não se dispõem a
digitar nem mesmo o voto nulo.
Se um eleitor pretende protestar
contra os vereadores e candidatos
da sua cidade, ausentando-se das
cabines de votação, não pode: os
eleitos baterão no peito a alardear
o simulacro de mobilização cívica.
A quem não se identifica com
postulante nenhum à prefeitura
também não se permite ficar de fora: força-se a presença, conferindo
uma legitimidade desproporcional
aos vitoriosos, pois compulsória e
intimidadora.
O voto obrigatório não é um mal
sobrevivente apenas à violência
instaurada com o golpe de 1964. A
norma autoritária o antecede, nos
períodos de democracia formal,
mas restritiva, como no veto a dezenas de milhões de eleitores
analfabetos.
A imposição dispensa candidatos e partidos de um desafio próprio de regimes democráticos estabelecidos, o de convencer os cidadãos a acorrer às zonas eleitorais.
Na Europa e nos EUA, o índice de
abstenção mede o prestígio das
instituições e o apelo das pregações. No Brasil, tanto faz o que os
políticos têm a dizer: o Estado
pune os faltosos.
O país atravessou o século 20
com gerações lutando pelo acesso
pleno ao voto, dos tempos do Estado Novo, com o Congresso fechado, aos do regime militar, com o
presidente da República aclamado
pelo colégio eleitoral.
O direito de votar, conquista da
democracia, não corresponde, contudo, à obrigação -degeneração
historicamente a gosto de coronéis
e ditadores.
Para construir um futuro melhor, o Brasil ainda tem muitas
contas a acertar com o passado,
que dá as caras em leis como a de
Imprensa e a da Anistia, ambas,
nos termos em que se estabeleceram, expressões de truculência
ditatorial.
Deveria também rever o voto
obrigatório, mantido pela Carta de
1988. Dos argumentos a seu favor,
um dos mais frágeis é o de que, com
o fim da faca no peito, menos pessoas escolheriam legisladores e governantes. Ora, este também é um
direito: transferir a outros essas
decisões.
Hoje à noite, quando os locutores anunciarem sorridentes as
marcas superlativas de sufrágios,
faltará a informação: os eleitores
votaram obrigados, e não, no caso
de muitos, porque quiseram.
MÁRIO MAGALHÃES é repórter especial.
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